Rafael Maynart

 

ENTRE OS SÁBIOS, A BELEZA

مع ألحكماء, ألحسن


Para tentar compreender uma estética voltada para o campo da natureza da harmonia e da noção de beleza na tradição árabe islâmica tomamos por referência o conteúdo dos textos de Al-Kindi, em uma sucinta aproximação com algumas de suas reflexões que rondam a formação conceitual das qualidades essenciais das coisas e do universo. Nutrido de influências matemáticas o filósofo discorre detalhadamente em seus escritos, animado por uma orientação mu’tazilita com forte inclinação científica, cercando tudo em busca do dhat, de onde tudo emana. A busca por elucidar o mistério do Uno no múltiplo revela muito do repertório notadamente islâmico de uma visão da realidade que se empenhava em produzir uma cultura intelectual com bases na perfeição do próprio texto sagrado, a referência máxima por excelência, Diz ele:
 
“Na verdade o que há na existência são duas existências: existência sensível e existência intelectual, na medida em que as coisas são universais e particulares.” [Al-Kindi, cap. 2]
 
Ocupado dessa busca pela característica essencial no mundo visível e invisível, o filósofo abássida investiga, sob influências corânicas, as questões ligadas à percepção do sensível e inteligível, e da natureza das ideias. Esse esforço intelectual está intimamente vinculado com tudo o que se seguiu em termos de uma tradição islâmica da estética nas artes visuais e nas artes dos discursos, irrigadas interiormente também pelo conceito de ‘unidade na multiplicidade’. Uma melhor elucidação conceitual da questão pode-se notar em Al-Kindi quando ele diz:
 
“A causa da qual procede a origem do movimento – refiro-me ao motor – é o agente. Assim, o “verdadeiramente um primordial” é, então, causa da origem do movimento de identitização – isto é, das paixões –, sendo, portanto o criador de todos os identitizados. Portanto, visto que não há identidade a não ser por aquilo que nela procede o “um”, em que a unicidade deste é a indetitização daqueles, então a unidade é a estrutura do todo.” [Al-Kindi, cap. 3]
 
O filósofo muçulmano nos mostra como uma busca pela qualidade essencial das coisas no universo em perspectiva da grandeza e da causa e efeito deste mesmo é a base para toda uma herança cultural sobre a qual correntes de pensamento e práticas viriam a se desdobrar. O reflexo deste pensamento na literatura e nas artes demonstraram como o pensamento islâmico mesmo foi capaz de produzir multiplicidade em sua unidade. A pesquisadora Gülru Necypoglu detalhou uma parte dos estudiosos árabes do passado que se debruçaram sobre as ciências da natureza, da filosofia e da religião e produziram muito daquilo que formou uma grande biblioteca canônica, de onde partiram muitos dos sábios e artistas. Tal qual Al-Haytham que com seu livro sobre percepção física e psicológica da luz e das formas, muito contribuiu com o legado artístico, da caligrafia às artes da palavra e ciências naturais.
 
Necypoglu demonstra através de Al-Haytham que a questão de gosto (dhawq) no pensamento árabe medieval está ligada tanto à arte (fann) quanto às artesanias (sina’at). Em quaisquer casos, fosse na literatura religiosa, filosófica ou pintura, arquitetura ou música, o padrão formativo do gosto depende de conceitos fundamentais ligados a percepção, sendo estes: posição (ta’lif) e proporção (tanasub). A ideia de beleza (husn) presente na teoria visual de Al-Haytham é alicerçada em categorias abstratas, não sendo absoluta em si mesma mas uma interação entre estas propriedades, a saber: luz, cor, distancia, posição, solidez, forma, tamanho, separação, continuidade, movimento, descanso, número, rugosidade, suavidade, transparência, opacidade, sombra, contraste, beleza, feiura, semelhança e dessemelhança. Dizia ele:
 
“A proporcionalidade sozinha pode produzir beleza, desde que os órgãos não sejam feios em si, embora não sejam perfeitos em sua beleza. Assim, quando uma forma combina a beleza das formas de todas as suas partes e a beleza de suas magnitudes e sua composição e a proporcionalidade de peças em relação à forma, tamanho, posição e todas as outras propriedades exigidas por proporcionalidade e, além disso, quando os órgãos são proporcionais à forma e o tamanho do rosto como um todo - isso é beleza perfeita.” [Necypoglu, Cap.10]
 
Ou quando ele também se refere à beleza produzida meramente pelo aparecimento da cor aos olhos:
 
“Encantar o observador e agradar aos olhos.” [Necypoglu, Cap.10]
 
Os conceitos de uma beleza essencial colocados por Al-Haytham também estão presentes nos conceitos islâmicos de folheado (tawriq) e oculto (tastir), que se alimentam na mesma fonte da qual parte Al-Kindi, de uma beleza sensível próxima da materialidade do mundo e uma beleza intermediária, superior, entre o mundo e o Uno. Visto que a geometria ocupa um status moral diante das artes matemáticas ainda mais alta, a noção de formas originárias e perfeitas sustenta que tudo o que provem de uma beleza estrutural contem em si as qualidades discursivas de um intermédio entre o mundo sensível e o intelectual. Deste modo, as meditações nas formas de muqarnas e musharabya podem ser compreendidas não como meros recursos decorativos, mas como citações numéricas diretas a versos do alcorão ou valores atribuídos aos números em pontas de estrelas, números de folhas de uma amêndoa esmaltada num conjunto de azulejos ou número de arcos sobre um mihrab.
 
Para além destes dois há também os conceitos, expostos pelo professor de arquitetura e arte árabe Nasser Rabbat, dos textos de Al-Maqrizi, ‘ajib e gharib. Tendo a qualidade de ser um derivado do outro, talvez sendo uma elevação dos dois anteriores. Nasser comenta a escassez de um vocabulário expressamente visual para os intelectuais tratarem dos temas ligados as artes da pintura. Entre um grupo de autores e historiadores fatímidas no reinado mameluco do Egito, o par de termos aparece em contextos ligados a outros campos de conhecimento, como a descrição de espécies de animais e vegetais e também nos atributos sagrados de fontes religiosas. Diz Rabbat:
 
“Mesmo os termos ostensivamente técnicos frequentemente usados ​​para relatar qualquer pintura, 'ajib e seu análogo gharib, parecem não ter sido baseados na percepção visual ou vocabulário artístico. Ambos eram provavelmente emprestados ou apropriados de categorias literárias cujas elaboradas discussões formaram a base de pelo menos dois gêneros, um em 'Ilm e um em Adab - que eram particularmente comuns no período medieval.” [Rabbat, 2006]
 
A ciência filosófica do hakim (‘Ilm) e a ciência religiosa do Imam (Adab) diferenciam o teor de cada um dos termos, sendo ‘ajib palavra relativa a ‘maravilhas’ e gharib relativa a ‘singularidades’; o primeiro ligado ao mundo sensível, experienciável, o segundo, àquilo que não pode ser descrito com palavras, espiritualizado. Estes conceitos são pertinentes quando se faz necessário compreender de que forma as artes eram concebidas e apreciadas em seu tempo, e também que natureza sensível esses vocábulos e descrições deixaram para os séculos futuros. Na literatura árabe do século onze muito se utilizava dos conceitos fundamentais das tradições pré-islâmicas em conjunto das reivindicações muçulmanas de qualidades estéticas para uma boa escrita e uma boa leitura. É sabido que toda uma exigência se forma entre artistas, especialistas e apreciadores que reconhecem o estatuto das artes não apenas pela concepção de objetos ou obras, mas também pela experiência das mesmas. Al-Ma’arri conhecia os cânones da escrita clássica e fazia uso das métricas que dispunham dos mesmos fundamentos da exploração geométrica dos astrônomos e filósofos.
 
Al-Ma’arri foi um dos poetas árabes abássidas que talvez mais tenha se aproximado de uma síntese estética entre as categorias esmiuçadas por Al-kindi em tudo o que ronda o testemunho do mundo e a experiência superior em sua essência; o gosto amargo na voz Abu l-Ala Al-Ma’arri aparece, como dito por Mansour Chalita, como uma verdadeira ‘estética da vida’. Sua carga existencial para tratar de temas como incredulidade, angústia diante do mundo e pessimismo no tempo, convertem a beleza das estrofes composta em métricas canônicas em uma inovação inesperada quando confrontadas com seus temas; nunca sem deixar de lado a ambiência islâmica em que se compuseram. A representação poética, discursiva, do mundo aos seus passos encontram a geometria estrutural da língua árabe e dos modelos poéticos de seu tempo. A beleza, a proporção, o oculto, o mundano, estão todos expressos em seus versos. Dizia Al-Ma’arri:
 

“Não prenda os pássaros, em sua ignorância, colocando armadilhas
Pois a opressão é o mal do abominável,
E deixe o mel e as abelhas para as quais as plantas aromáticas se abrem
Bem, eles não o produzem para outros nem o fazem para distribuí-lo.
Eu lavei minhas mãos de tudo isso.
Gostaria de ter notado antes de minhas têmporas ficarem cinza”
 
Fonte: ISLÃ: Arte e Civilização / Rio de Janeiro, RJ: Centro Cultural Banco do Brasil, 2011
 
A imagem de uma tábua de escrever revela a confluência dos critérios citados sobre a beleza estética na produção visual e literária islâmica. Em um único objeto há as artes da caligrafia, da pintura folhada tawriq, a estrutura geométrica do tastir , posição ta’lif, proporção tanasub, harmonia cromática i’tilaf, uma expressão do gharib por seu caráter espiritual, a maravilha do ‘ajib em formas naturais, sem deixar de lado o puro elogio da escrita e da língua árabe; a língua do Livro revelado, da recitação do Profeta, tal qual o Al-Quran Al-Karim onde letras soltas adornam os versos das suras. A expressão visual conversa com a poesia citada de Al-Ma’arri quando notamos que o poeta fez uso dos mesmos padrões para trazer sua fala: a construção matemática de estrofes, a expressão natural do mundo descrito, assim como um grau de piedade para com os animais, uma carga oculta do tempo universal em tom angustioso, os contrastes das cores do cabelo grisalho no tempo humano com a beleza a cargo imaginativo de flores e pássaros. O poeta cego não fez uso dos olhos para produzir uma arte tal qual a do pintor: ambos beberam do mesmo poço.
 
Al-Ma’arri também usou de seu estilo poético, caracterizado pela dureza com os homens e com o mundo terreno, para revelar conhecimento da própria qualidade da visão como sentido de percepção de belezas e prazeres, em um de seus versos diz:
 
“Homens de mente aguda me chamam de asceta,
Mas eles estão errados em seus diagnóstico.
Apesar de disciplinar meus desejos,
Eu apenas abandonei o mundo de prazer
Porque o melhor desses se afastou de mim.”
 
Não apenas descrições naturalistas do mundo físico eram matéria de suas indagações, mas também questões elevadas e de profunda abstração. Isso evidencia em apenas poucas linhas como a dualidade presente na tradição islâmica estivera ativa entre estes pensadores. A noção dualista é também afirmativa da busca do Uno na multiplicidade: o pensamento e as artes abstratas não são coisa diferente do pensamento e das artes figurativas ou descritivas, são partes de um mesmo todo. Nem tanto duas faces de uma moeda, mas duas qualidades em uma mesma face de onde uma essência emana em todas as formas. A morte, o tempo, a angústia, a sensação de duração no espaço físico, frequentam tanto Rumi como o poeta de Ma’ara.
 
Fica expresso nesse breve caminho por conceitos da arte islâmica que tanto Al-Kindi como Al-Ma’arri, ambos intelectuais da chamada era de ouro do islã, tomaram por vocabulário algumas das bases culturais nas quais estavam imersos. Al-Ma’arri frequentava círculos de eruditos mu’tazilitas e foi ao mesmo tempo indivíduo que circulou entre imãs e representantes de tradições de seu tempo. Sua formação está carregada de forte influência dos sábios muçulmanos, assim como também ele influenciou muitos dos que viriam posteriormente. Pode-se perceber que a passagem do conhecimento e a consolidação dos elementos para uma arte árabe-muçulmana sempre esteve em profusão. Um verso livre corria entre as pessoas dizendo “sua poesia é como sufismo, oculta e clara ao mesmo tempo.”
 
Pensando uma curadoria decolonial esta breve investigação busca entender como é possível tratar de objetos que correspondem a critérios conceptivos e valorativos diferentes daqueles aos quais estamos habituados no pensamento ocidental voltado para sua estética própria. O presente texto trata de uma pequena parte de um trabalho em andamento onde busca-se fazer corretas leituras de objetos da cultura islâmica em comparativo com as apropriações pelo ocidente através de assimilações e distorções de função e matéria de certas características estruturais.  A chamada arte orientalista muito saturou os sentidos dos observadores de determinados aspectos reduzidos à meras formas, não apenas causando uma vista míope das artes árabes e islâmicas, mas também deslocando contextos e até mesmo esvaziando objetos de suas cargas formativas. A tarefa do presente é regressar. Como fazem os sufis: lembrar.
 
Referências
Rafael Maynart: Aluno do curso de História da Arte na UFRJ e curador independente.
Sobre a Filosofia Primeira: Al-Kindi / Tradução: Miguel Attie Filho. São Paulo - SP. Edição do Autor, 2014.
DEL RIO, José Ramírez: Tiempo, Muerte y Dolor en Al-Ma’arri. Optika Editorial, Sevilla, 2013.
HOQUE, Azmal: A Study on Blind Poets in Abbasid Period 750 to 1258 AD.  Disponível em: http://hdl.handle.net/10603/115197
NECYPOGLU, Gülru: The Topkapi Scroll: Geometry and Ornament in Islamic Architecture. The Getty Center for the History of Art and Humanities, Santa Monica, 1995.
RABBAT, Nasser: ‘Ajib and Gharib: Artistics Perception on Medieval Arabic Sources. Medieval History Journal, London, 2006.


3 comentários:

  1. Boa noite. O tema é muito interessante! Gostaria de saber se existem filósofos ocidentais declaradamente influenciados pelo trabalho de Al-Kindi e Al-Ma'arri ou se podemos identificar a influência deles no pensamento ocidental de maneira implícita.

    Att,
    Ana Paula Alvarez Ribeiro Lopes.

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    1. Olá Ana Paula!

      A influência de Al-Kindi e Al-Ma'arri pode ser percebida nos escritos de intelectuais como Thomas Robbes e Roger Bacon, por exemplo. Como fazem parte do período clássico é fácil imaginar que seus escritos tenham ido longe à sua época. Al-Ma'arri também foi influente para teóricos modernos, não é difícil perceber que os Existencialistas franceses tenham lido traduções dos clássicos árabes, que frequentam desde de Dante, passando por Voltaire, Nietzsche entre muitos outros. Há pouca pesquisa feita sobre o verdadeiro papel da filosofia islâmica no pensamento ocidental, vemos mais a título de influências pinceladas em um ou outro.

      Abraço!

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