PARA QUE O TEMPO NÃO APAGUE: AUTOBIOGRAFIAS NO EGITO ANTIGO
Foi a partir das primeiras décadas do século XIX que a leitura da escrita egípcia se tornou possível, quando o francês Jean François Champollion anunciou ao mundo o deciframento dos hieróglifos.
De origem grega, a expressão ta hieroglyphica, significa “as (letras) sagradas esculpidas”, de onde vêm “hieroglífica” e “hieróglifos”. Para os egípcios, a escrita era uma invenção de Toth, deus da sabedoria, que decidiu ensiná-la aos homens contrariando uma ordem do deus Ra. O nome dado por eles à sua escrita era medju netjer, ou literalmente, “palavras dos deuses” (COELHO, 2012, p.188).
A descoberta de Champollion mudou os rumos da história dessa cultura que a partir de então, passou a ser conhecida e revelada por intermédio de suas próprias inscrições e não somente pelo olhar dos estrangeiros como vinha sendo realizada durante milênios, visto que seus inscritos salvaguardaram o pensamento, as crenças e os valores que predominaram no seio dessa sociedade desde seus primórdios, fornecendo uma visão do que antes era desconhecido.
O processo de deciframento teve desdobramentos na academia e encaminhou para a criação de uma nova ciência, a Egiptologia, que se dedicaria para revelar panoramas do que se passou na terra da esfinge e, a contar de então, muitos outros filólogos e egiptólogos se debruçaram sobre as inscrições egípcias, possibilitando que passagens da história dessa sociedade sofreram releituras, sendo que até a atualidade, o fascínio pela linguagem escrita egípcia permanece, seja por parte de leigos quanto de estudiosos, cujos mistérios que encantam o mundo a séculos (COELHO, 2012, p.189).
O alcance gerado com a decodificação representou muito mais do que apenas ler o que os egípcios deixaram escrito ou observar as formas de composição dos sinais que construíram, em virtude de que o efeito foi muito mais grandioso, pois ocasionou a compreensão do significado do que ficou registrado, inserido no contexto da própria história dessa sociedade.
Alicerçado nos novos estudos e de maneira gradativa, as estruturas textuais egípcias foram sendo interpretadas, dentre as quais estão as autobiografias. Esse modelo de registro que esteve presente desde o Reino Antigo, não era utilizado exclusivamente pelos faraós, pois os achados indicam que sacerdotes, nobres e altos funcionários também deixaram parte de suas vidas narradas nessa construção literária.
Em seu contexto, as autobiografias funerárias possuiam finalidades específicas, evidenciando como os mortos continuavam influenciando aspectos da vida, uma espécie códigos para o enaltecimento das boas qualidades do morto e a preservação destas para a eternidade. A narrativa toma certos episódios biográficos do sujeito e os ordena de forma a ser o relato de uma vida cheia de glórias, mostrando que o sujeito merece uma boa pós-vida e, ao mesmo tempo, criando ritualisticamente esta realidade (BALÈM, 2017, p.21).
Os escritos nesse gênero presentes em pedras, papiros ou tijolos, são importantes fontes históricas que trazem à tona contextos específicos e muitas vezes marcantes dessa civilização, além de permitirem que nos aproximemos da forma de pensar dos egípcios antigos, mesmo que de forma parcial e fragmentada, bem como ilustram a conhecer a maneira como compreendiam o mundo ao seu redor.
Do ponto de vista historiográfico, pode-se dizer que o gênero biográfico voltou a ganhar e compor a escrita da História na primeira metade do século XX, quando teve início a renovação do campo da História Política que passou a ser produzida seguindo novos pressupostos, se efetivando como paradigma, recuperando espaço na produção dos historiadores.
Sob essa perspectiva de escrita Le Goff escreveu que “a biografia
histórica nova, sem reduzir as grandes personagens a uma explicação
sociológica, esclarece-as pelas estruturas e estuda-as através de suas funções
e papéis” (1990, p. 7- 8).
Autobiografia:
a minha história
Para os egípcios os escritos autobiográficos eram materiais singulares, especialmente porque estavam ligados a perspectiva de suas crenças mortuárias. E, exatamente devido a essa correspondência, deveriam ficar salvaguardados em locais que remetessem a imortalidade, dessa forma, a tumba que abrigaria o corpo do biografado, seria o local mais adequado para ser o depositário da composição.
De regra geral, esses textos não eram para alcançarem os olhos do público, sendo colocados próximo a porta de entrada do complexo mortuário, posto que anunciariam quem era a pessoa que habitava àquele espaço. Quanto à forma de escritura, estatisticamente é possível afirmar que prevaleciam em maior número o método da pintura na parede ao entalhe na pedra e, independentemente de qual fosse o mecanismo escolhido, era através delas que se oportunizava conhecer como os moradores da terra das pirâmides desejaram imortalizar sua história, abrindo caminho para a eternidade.
Andrea Gnirs, ao analisar o conteúdo desse estilo de escrita egípcia, classifica-as em quatro categorias: as históricas, que foram comuns durante os Reinos Antigo e Novo, que relatam grandes feitos dos sujeitos e suas recompensas, e justamente devido a isso é que esses indivíduos conseguiram obter promoções e acumularam riquezas; as reflexivas, mais populares no período do Reino Antigo, tematizam as regras éticas da elite e acabavam sendo considerados textos de sabedoria. Outro grupo eram as confessionais, vista como uma forma de autobiografia reflexiva com a introdução de novos elementos religiosos criadas a partir do Reino Novo, atribuindo as mudanças na vida do sujeito como consequência da intervenção do rei ou dos deuses; e, a última, as encomiásticas, mais comuns durante os Reinos Médio e Novo, que evocam temas de status social e sucesso profissional, além de mostrarem forte senso de iniciativa pessoal, referências diferentes das produzidas no Reino Antigo, período que expressavam maior dependência do rei ( 2001, p.23).
Apesar de distintas quanto formato e propósitos, é possível identificar algumas referências que predominaram na estrutura da construção do corpus das autobiografias, podendo serem consideradas como denominadores comuns nessa documentação. A redação era construída na primeira pessoa do singular, sendo que o texto era composto dentro de três ordens: primeiramente, era mencionado o nome do indivíduo autobiografado recebendo destaque na parte mais elevada do conjunto do documento; em seguida, apontava-se os títulos honoríficos recebidos ao longo da vida e, por fim, a descrição dos relatos dos acontecimentos selecionados para permanecerem vivos. No tocante a última parte, que de certa forma era a mais densa, é possível afirmar que são parcelas e recortes de uma existência que normalmente não são reportados de forma cronológica e sequencial, como também os assuntos não estavam interligados uns com os outros.
Correlacionado a ordem sequencial mencionada acima, Maria Thereza assim escreveu:
“As autobiografias foram esculpidas nas tumbas de altos funcionários da administração egípcia com o fito de evocar suas personalidades. Escritas sob a forma de narrativa, as autobiografias são precedidas por uma fórmula funerária (normalmente a htp-di-nsw, que significa ‘uma oferenda que o rei faz’), a qual vem acompanhada de um rol de titularidades que supostamente correspondem a funções exercidas por essas pessoas. Depois segue a descrição de atos realizados pelo falecido em vida, inscrições que tinham como objetivo facilitar a entrada dessa pessoa no outro mundo, a exemplo do encantamento 575 dos Textos dos Sarcófagos (‘eu desejo triunfar graças ao que eu fiz’) (JOÃO, 2015, p.80)”.
Associado à escolha dos temas escolhidos para ficarem imortalizados, por certo eram particularizados e, sem sombra de dúvidas, classificados como mais marcantes para àqueles que os viveram, visto que foram selecionados para estarem compondo o conjunto da obra. Em relação a esse aspecto, Giovanni Levi (1996, p.173), afirma que a biografia possibilita responder questionamentos a respeito de “como os indivíduos se definem (conscientemente ou não) em relação ao grupo ou se reconhecem numa classe”.
Ademais, também podem ser lidos da maneira como os biografados desejavam ser enxergados, quando a subjetividade se fazia presente em relação a forma como o acontecimento foi narrado, havendo intencionalidade e parcialidade em sua narração. Tal colocação parte do princípio de que esse tipo de relato não foi construído em vão, pois por traz do que está escrito existem motivações que levaram sua execução e que dificilmente está explicitado.
Murillo, citando Edward Said (2005), coloca que as narrativas escritas são moldadas pelos acontecimentos da época e pela situação que se está vivenciando. Sendo assim, o sentido histórico permite que o escritor escreva consciente de seu lugar no espaço e no tempo. Ao narrar, o escritor transmite todas as suas experiências, assim, seus escritos são influenciados por todos os acontecimentos vivenciados no passado. Nesse sentido, as narrativas biográficas devem ser analisadas relacionando-as ao contexto histórico no qual o escritor está inserido.
Examinando o conteúdo dos textos autobiográficos é possível observar que eles contribuem para juntar as peças de uma história, de proporcionarem a realização do entrecruzamento de vidas, bem como referências a determinados períodos da história da sociedade, sejam eles momentos de turbulência quanto de calmarias, prosperidade e decadência.
Quanto aos responsáveis por imortalizar esses textos quase nada se sabe quem foram eles, visto que nenhuma identificação foi encontrada, mas, tudo leva a crer que não foram feitas a próprio punho dos nominados, e que os registradores assumiam uma competência de caráter técnico na execução, em virtude de que ler e escrever eram práticas restritas nessa sociedade, somente uma parcela pequena tinham acesso.
Todavia, como não é possível saber quando o final da vida terrena vai acontecer, alguns moradores da terra do Nilo deixavam a incumbência de que fosse produzido o material biográfico pós-morte, como forma de manutenção de sua existência. Já uma outra parcela, quando atingiam certa idade, se dedicavam a efetivar tais escritos, assim, algumas dessas obras foram produzidas próximas ao final da vida dos autobiografados.
Talvez, devido a esse dado apresentado acima, é que não é difícil encontrarmos referências de estudiosos que questionam a veracidade de alguns dos conteúdos das autobiografias, colocando em dúvida se algumas das informações citadas foram acontecimentos vivenciados pelos titulares, ou se o que está sendo apresentado foi algo que eles gostariam que tivesse ocorrido como mencionado. Essa interpretação que gera dubialidade além de estar relacionada a linha tênue que delimita o que podemos chamar de fronteira imaginária idealizada a partir da crença funerária, soma-se ao fato de que terceiros podem construir parte da narrativa.
Maria Thereza David João, foi uma pesquisadora que evidenciou em seu trabalho a perspectiva da possibilidade da utilização da ideia de fronteira imaginária. A autora, analisou três textos autobiográficos do Reino Antigo e afirmou que “justamente em virtude do propósito a ser atingido, esses textos apresentam um relato de homem ideal, muito mais que um espelho fiel da realidade.” (2015, p.54). Esse encaminhamento de análise elucidado pela autora, pode ser observado quando se faz o cruzamento das informações com outras tipologias de fontes, visto que constantemente novos descobrimentos estão aclarando a história dessa sociedade.
Contudo, independente das questões relativas ao que o texto possa informar quanto ao conteúdo, outro elemento que pode ser exposto em relação a essa forma de escrita é que as ‘inscrições autobiográficas que foram encontradas em muitas delas deram os primeiros passos para o surgimento de um tipo de literatura no Antigo Egito. O elencar dos títulos do morto, junto com alguns elementos narrativos é o que deu origem ao gênero das autobiografias funerárias. Seu formato não era tão ritualizado como as fórmulas de oferendas, deixando espaço para a criação. Elas se tornaram um importante gênero literário por milênios” (JOÃO, 2015, p.55).
Vale mencionar que como primeiro propósito, da utilização da estrutura de escrita estava atrelada a perspectiva política e econômica, sendo que somente mais tarde é que passou a estar relacionada a outros fins, como o religioso e o social, por exemplo.
Por
fim, para concluirmos a reflexão sobre
as autobiografias produzidas em território egípcio na antiguidade, afirmamos
que são importante fonte de reflexão histórica, expressão de uma cultura que
permite conhecer um pouco do pensamento dessa sociedade.
Referências
Maura Petruski é Doutora em História UEPG.
BALÉM,
Wellington Rafael. Weni, o Velho: o problema de uma (auto)biografia egípcia
no reino antigo tardio. Dissertação de
Mestrado. Porto Alegre, 2017.
GNIRS, Andrea M.
Biographies. In. REDFORD, Donald B. (ed.). The Oxford Encycopledia of
Ancient Egypt. New
York: Oxford University Press, 2001. v.1.
COELHO,
Liliane Cristina. Hieróglifos e Aulas de História: Uma Análise da Escrita
Egípcia Antiga em Livros Paradidáticos. Revista Mundo Antigo – Ano I –
Volume I – Junho – 2012.
JOÃO,
Maria Thereza David. Estado e elites locais no Egito no final do III milênio
aC. Tese de Doutorado. São Paulo, 2015.
LE GOFF, Jacques. A
história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
LEVI,
Giovani. Usos da Biografia. In: AMADO, J. FERREIRA, M. M. Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
MURILLO,
Aline Lopes. O uso das biografias nas pesquisas antropológicas. Revista
Perspectivas Sociais Pelotas, Ano 2, N. 1, p. 2-10, março/2013.
Olá Maura! Parabéns pelo seu texto!
ResponderExcluirAntes de fazer meu questionamento queria agradecer pelo seu trabalho, pois a Senhora foi minha professora na minha primeira graduação e contribuiu muito! Obrigada!
Muito interessante a temática das autobiografias que nos trazem uma noção da preocupação em relação à reputação do falecido, principalmente sob o viés sociológico na categoria encomiásticas, quase como um “lattes” atuando como instrumento de facilitação na entrada no outro mundo. Minha pergunta é se há algum registro de que havia em algum momento/celebração que esses textos eram obrigatoriamente lidos, pois como não faziam parte dos ritos, talvez também não fossem vistos como essenciais no exercício da religiosidade.
Obrigada.
Talita Seniuk
Olá Talita, como vai? Muito bom reencontrar pessoas!!! Obrigada por ler meu texto.
ResponderExcluirNão tinha pensado pela perspectiva do lattes, mas de certa forma podemos seguir seu raciocínio porque aponta para a trajetória de um indivíduo.
Normalmente não havia leitura pública dessas inscrições, visto que era um material para ser lido pelos deuses pois interessaria somente a essa categoria, como forma de conhecer quem havia sido o indivíduo que chegaria no outro plano.
Abc.
Obrigada Maura, tudo de bom!
ExcluirPara você também Talita!!!
ExcluirIvanize Santana!
ResponderExcluirBoa-noite, Maura! Quero felicitar pelo precioso texto! Precioso e preciso!!! trabalho com turmas dos anos finais...e o seu artigo veio na hora certa, pois, estou trabalhando o EGITO ANTIGO e, ao lê-lo, poderei fazer alguns breves recortes sobre essa parte das autobiografias egípcias, fontes históricas relevantes para o RECONTO E VALORIZAÇÃO DESSA CULTURA MILENAR!! GRATA!
Olá Ivanize, boa noite!! Obg por ler meu texto e agradeço sua opinião, é gratificante saber que estamos contribuindo de alguma maneira.
ResponderExcluirA cultura egípcia é encantadora e ao mesmo tempo desafiadora, porque o número de pesquisadores que estudam essa sociedade é bastante significativa.
Um grande abraço!!!