Matheus Henrique da Silva Alcântara e José Otávio Aguiar

 

FRAGMENTOS DO NACIONALISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS SELOS E A POLÍTICA OTOMANA DOS JOVENS TURCOS (1908-1918)


Declínio e Colonialismo, o destino do último império muçulmano?

O intervalo entre os séculos XIX e XX marca o período mais conturbado da história otomana. Nele, foi possível observar o lento processo de desintegração do Império Otomano pelas grandes potências imeprialistas (Inglaterra, França e Rússia). A invasão ao Egito pelo exército francês comandado por Napoleão Bonaparte em 1798 inaugurou á era onde as potências europeias começaram a interferir diretamente no destino dos Sultões em Constantinopla e no de seus súditos. Procurando inicialmente uma forma de reorganizar as suas forças militares nos moldes europeus para impedir invasões territoriais, os Sultões logo se viram cercados pela urgente necessidade de melhorar a estrutura administrativa e econômica do Império. Fazendo com que se iniciasse um processo de modernização da sociedade otomana, conhecido como Tanzimat (1839-1876). Entre as décadas de 1860 e 1890 começaram a se formar uma comunidade de funcionários públicos, professores, intelectuais, e oficiais militares formados nas principais escolas e liceus construídos sobre os auspícios da “Era Tanzimat”. Indivíduos instruídos incutidos pelo pensamento reformador passaram a galgar posto de prestígio na administração otomana.

Conjuntamente, houve mudanças na superestrutura do Estado imperial otomano, dentre os quais o Decreto Gulhane (édito imperial publicado 3 de novembro de 1839, que declarava igualdade entre muçulmanos e não-muçulmanos no interior do Império) e a Kanun-i Esasi (que pode ser traduzida como Lei Base/ Constituição, que foi proclamada em 1876 pelo Sultão Abdülhamid II, e estabelecia a existência de um Parlamento composto por duas Câmaras, posteriormente dissolvidos por ordem do Sultão), que constituíram-se em tentativas de efetivar a igualdade jurídica entre otomanos muçulmanos e outros povos, além de propor a representação da sociedade dentro do Estado imperial.

Contudo, a infraestrutura continuou inalterada, pois apesar do aparente desenvolvimento social e econômico em Constantinopla, o sistema financeiro e ramos essenciais da produção como transportes, construção, comunicação e a exportação se desenvolveram através do capital imperialista da Inglaterra, França e Alemanha (Palmer, 2014; Frokin, 2008). Pois desde a crise financeira otomana de 1875, causada pela quebra da bolsa de valores de Viena (Áustria), o Império Otomano ficou impossibilitado de realizar os pagamentos dos inúmeros empréstimos contraídos na Era Tanzimat. A crise financeira otomana iniciada no sultanato Abdullaziz perdurou até 1879, quando a Sublime Porta e os credores europeus assinaram um acordo, ratificado pelo Sultão somente em 1887, por meio do Decreto de Mouharrem, cedendo o controle sobre as fontes de renda do Império para o pagamento dos empréstimos. O decreto outorgava a administração da dívida pública otomana pelos bancos europeus sediados em Constantinopla (principalmente, franceses), além de ceder os lucros obtidos na alfândega, e impostos sobre a seda, a pesca, tabaco, bebidas alcoólicas e selos postais ficaram entregues ao monopólio estrangeiro (Mcmeekin; 2011). Relegando ao Império Otomano o papel de fornecedor matérias-primas, e manufaturas de baixa tecnologia circunscritas a região da Anatólia. Paralelamente, ao aparente processo de modernização do Estado otomano é possível ver a sua desintegração territorial em prol dos interesses imperialistas, da Inglaterra e Rússia que digladiavam pela supremacia econômica e política na Europa.

Nos anos iniciais do século XX vimos o surgimento de uma propaganda pan-islâmica, alicerçada em medidas administrativas centralizadoras pelo Sultão Abdülhamid II, que procuravam soerguer a instituição do sultanato que vinha franco em declínio, devido tanto a perca de prestígio pelo desmembramento territorial e frequentes golpes de estado, quando pelo surgimento de um corpo burocratizado de funcionários públicos tendo como símbolo a Sublime Porta (nome que designava os portões do palácio onde ficavam localizada as sedes dos ministérios e a corte do Sultão). O que resultou no surgimento de um nacionalismo otomano, mas especificadamente turco, entre a camada intelectual de oficiais militares que passaram a constituir a oposição ao regime, sendo identificados como “Jovens Turcos”. Com o aumento das medidas centralizadoras pelo Sultão, e a pressão internacional das grandes potências em prol da política imperialista, uma revolução eclode em 1908 no desgastado Império.

 

O fim do Sultanato e o início da monarquia constitucional

No final do século XIX, o Império Otomano havia perdido substancialmente seus territórios na África e na Europa Oriental, primeiramente o Egito com a invasão napoleônica que retirou o Cairo da esfera de influência política otomana (que embora integrante do Império, possuía um governo autônomo que em 1888 passaria a compor área de influência colonial britânico). Posteriormente a Grécia com a guerra da independência entre 1821 a 1832. Além dos sucessivos confrontos com os russos (Guerra da Crimeia 1853-1856, e a Guerra Russo-Turca 1877-1878) pelo domínio do Balcãs, que terminar-se-iam com a criação dos estados independentes da Moldávia e Valáquia (1856), Bulgária, Montenegro, Sérvia, e Bósnia Herzegovina pelo Tratado de Berlim de 1878. Somado a isso havia os constantes levantes populares na capital otomana (por exemplo, a Revolta dos Janízaros de 1826), bem como a rebeldia de alguns governadores como Muhammud Ali e seu filho Ibrahim no Egito.

Temendo a perdas de novos territórios para as grandes potências imperialistas, o Sultão Abdülhamid II implementou um projeto de maior centralização politico-administrativa sobre as regiões sobre seu domínio. Em 1861 a região do monte Líbano tornou-se uma unidade administrativa especial, chamada de Mutassarriflik, governada diretamente pela Sublime Porta, em 1888 foi á vez da região de Jerusalém. Bem como foi patrocinada uma propaganda pan-islâmica encabeçada Sultão em prol de sua soberania como Califa sobre os povos muçulmanos (Khatlab, 2015). O Império Otomano com o seu sistema financeiro entregue ao capitalismo francês, e sobre constante ameaça militar russa e inglesa, necessitava de uma grande potência capaz de fornecer apoio externo, e capital para o desenvolvimento de uma infraestrutura capaz de consolidar os seus domínios na região do Oriente Médio, é neste momento que se inicia o fortalecimento da influencia prussiana na Sublime Porta.

Paralelamente ao projeto de centralização administrativa encabeçada pelo Sultão, um nacionalismo otomano e turco começou a tomar forma através de um movimento da juventude intelectual do Império, que ficou conhecido como “Jovens Turcos”. Uma elite intelectual formada nas Academias Militares, na Escola de Serviço Público, no Liceu Galatasaray e em outras instituições de ensino, formou o corpo político nacionalista de contestação ao governo do Sultão, com forte organização na última década do século XIX. Organizaram em fevereiro de 1902 e dezembro de 1907 congressos de exilados políticos e oficiais militares, onde passaram a adotar o nome de Comitê de União e Progresso – CUP (Ittihad ve Terakki Cemiyeti). Que incluía a Sociedade Otomana para a Liberdade (Osmanli Hurriyet Cemiyeti) fundada pelo funcionário dos correios otomanos, Mehmed Tallat, e o movimento secreto Pátria (Vatan) fundado por Mustafá Kemal, ambos sediados em Salônica na Macedônia, território extremamente delicado sobre domínio otomano nos Balcãs. Deflagram uma rebelião em 1908, tendo como base as fileiras militares do exército otomano estabelecido na Macedônia, que terminaria com a deposição do Sultão Abdülhamid II e inauguraria a fase da monarquia constitucional no Império Otomano.

Os acontecimentos do verão de 1908 na província macedônica do Império Otomano espalharam um sentimento de revolta por toda região ocidental do império, congregando entorno da CUP a elite militar e a setores da administração pública. Os insurgentes defendiam o restabelecimento da Constituição de 1876, a reabertura do Meclis-i Mebusan (Câmara dos Deputados), e a igualdade entre os diferentes povos que habitavam o Império. Abdülhamid incapaz de conter o movimento publica uma ordem imperial em 24 de julho de 1908, anunciando o retorno da Constituição de 1876. Em sucessivos decretos imperiais determinaram a anistia dos prisioneiros e exilados políticos, fim das prisões arbitrárias, igualdade de raça bem como de religião, concessão de liberdade imprensa e direitos de associação politica, e por fim uma reorganização governamental, exemplificada pela convocação de um parlamento eleito (Palmer, 2014).

Estás medidas provocaram um clima de comoção interna e externamente no Império, pois jornais turcos e a imprensa mundial publicavam artigos em seus periódicos abordando o retorno da Constituição e a abertura de um governo democrático no antigo Império Otomano. Nesse interim surgiram vários partidos para as disputas das eleições de 1908, realizadas entre novembro e dezembro, entre eles a União Liberal Otomana (Osmanli Ahrar Firkasi) e a própria CUP que passou a se organizar como partido político para concorrer, tendo seus integrantes identificados com Unionistas. O embaixador norte-americano Henry Morgenthau, que atuou junto a Sublime Porta em Constantinopla (entre os anos de 1913 e 1916), apresenta em seu livro biográfico/memorialista, “A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX” (1918), a conjuntura propagada pela mídia impressa internacional:

“Antes de ir para a Turquia, eu tinha ideias muito diferentes sobre a organização. Já em 1908, lembro-me de ter lido notícias sobre a Turquia que agradavam fortemente minhas convicções democráticas. Esses relatos me informavam que um grupo de jovens revolucionários havia partido das montanhas da Macedônia, marchando sobre Constantinopla, deposto o sanguinário sultão Abdul Hamid e estabelecido um sistema constitucional. Os jornais nos contavam que a Turquia havia se tornado uma democracia, com um Parlamento, um ministério responsável, sufrágio universal, igualdade perante a lei para todos os cidadãos, liberdade de opinião e de imprensa, bem como todos os elementos essenciais de uma comunidade livre e amante da liberdade”. (MORGENTHAU, 2010, P. 20-21)

Esse clima de euforia e mudança culminou no afrouxamento da política administrativa do Império, que ocasionou a perda definitiva territórios europeus nós quais exercia “suserania nominal”, tais como Creta e Bulgária. Aliada as reformas sócias e culturais pelas quais passava a sociedade otomana no linear do século XIX, em conjunto com sucessivas perdas territoriais, fez surgir um pensamento conservador e muçulmano, articulado entorno da Sociedade pela Unidade Islâmica. Sendo está por sua vez responsável pela organização de passeatas no mês de abril de 1909, onde militares e civis invadiram o Parlamento, clamando o retorno á autocracia imperial, que prontamente recebeu apoio do Sultão. Tropas leais a CUP estacionadas na Macedônia, comandadas pelo major Mustafa Kemal se dirigiram então para a capital para conter o movimento contrarrevolucionário. Escaramuças de militares pró-Unionistas e setores militares conservadores apoiados por civis, foram registradas nas ruas de Constantinopla.

Em 27 de abril de 1909 integrantes do parlamento otomano conseguiram se reunir para debater a crise politica que se prolongava e ameaçava a segurança do Império. Nesta reunião eles sancionaram a deposição do Sultão Abdulhamid, após sessenta e dois anos de governo, bem como outras medidas para limitar o poder político do Sultão, sendo retirada a capacidade de designar os ministros e os chefes das câmaras parlamentares, bem como os funcionários do palácio, a suspensão do poder de veto em relação às leis votadas. Para consolidar o poder político do parlamento, o Sultão deposto também foi exilado na região de Salônica, onde os membros da CUP esperavam mantê-lo sobre “controle”, sendo por fim substituído por Mehmed V.

Neste momento podemos ver os contornos políticos que governo otomano passou a expressar sobre a administração dos Jovens Turcos. A substituição de um Sultão autocrata por outro facilmente manipulável, pois devia sua ascensão ao trono aos membros da CUP e, com poderes drasticamente limitados pelas reformas parlamentares, assinalou a decadência da instituição do sultanato, que se viu cercado inimigos e podado pela Constituição. Partindo da análise Louis Althusser, sobre o Estado e seus aparelhos de dominação (Aparelhos Ideológicos do Estado, 1985), o Sultão bem como toda a elite que gravitava entorno dos palácios se viu retirada do poder de seis séculos do aparelho de estado imperial, por uma classe militar de intelectuais defensores de ideias nacionalistas e liberais, que o transformou em aparelho ideológico do “novo Estado imperial otomano” proporcionando certa margem de legalidade á monarquia constitucionalista recém-instaurada.

O biênio de 1908-09 foi intensamente turbulento para o Império Otomano, e assim como ocorrem na maioria das revoluções burguesas às transformações causaram não queda do antigo regime, mas sua transfiguração. O Comitê de União e Progresso, formado pela intelectualidade administrativa e militar beneficiada pelas reformas da era Tanzimat, via-se no controle do aparelho do Estado imperial, enquanto que ao Sultão ficaria relegada a função de aparelho ideológico do Estado subdividindo sua atuação em três sistemas, política ao propor legalidade ao domínio da CUP, cultural por ser uma instituição com séculos de história, e religiosa pelo fato do Sultão otomano possuir o título Califa (a palavra califa designa o sucessor do profeta Maomé, pois quando o profeta veio a falecer no ano de 632 d.C, a comunidade muçulmana escolheu seu sucessor que passou a ser chamado de “Khalifat Rasul Allah”, o sucessor do Profeta de Deus; deste modo, o califa ocupa a posição de líder temporal e espiritual da comunidade islâmica, bem como defensor dos lugares sagrados, as cidades santas de Meca e Medina). Contudo, nem todos os setores da sociedade otomana concordavam com a reconfiguração politica em voga, e isso será demonstrado na tentativa contrarrevolucionária acima mencionada, e nos embates políticos que se seguiram que abriram espaço para a criação de nacionalismos, entre eles o turco e o árabe.

 

Atrás das trincheiras: A política nacionalista otomana

Os anos após os eventos de 1908 não impediram a continua desagregação do Império Otomano em nações independentes patrocinadas por potências europeias (Rússia, Itália e Inglaterra). Em 29 de setembro de 1911 eclode a guerra ítalo-turca pelo domínio do território líbio, que terminou em 1912 com a derrota otomana, e a anexação da Líbia á área colonial italiana. No final de 1912 uma coligação de países balcânicos (Grécia, Montenegro, Sérvia, e Bulgária) declara guerra ao Império, resultando na perda de quase todo o território europeu que ainda pertencia aos otomanos, e culminando na deflagração da Segunda Guerra dos Balcãs (conflito onde a Bulgária volta-se contra seus antigos aliados agora unidos com o Império Otomano). Somam-se ainda, as contínuas revoltas internas nos territórios da Síria, Líbano, Albânia (sobre virtual controle otomano), Arábia e Arménia.

Nos momentos finais da primeira guerra balcânica, mas especificamente em 23 de janeiro de 1913, ocorre um golpe de estado articulado membros da CUP, que deferiu o golpe final sobre o poder político do sultanato. Conhecido com o ataque a Sublime Porta, ou em turco Bâb-i Âlî Baskini, foi segundo Palmer um “dramático episódio de destaque na história dos Jovens Turcos” (2014, p. 217). Militares e políticos unionistas invadiram a Sublime Porta, e adentram na sessão do Conselho de Ministros, assassinando o general Nazim e exilando Mehmed Kamil (Ministro do Exterior), Abdurrahman Bey (Ministro das Finanças) e Reşid Bey (Ministro dos Assuntos Internos). Neste caso, a já fragilizada instituição do sultanato otomano torna-se um império constitucionalista, que rapidamente declina para um triunvirato, formador por Mehmed Tallat (Ministro do Interior), Ismail Enver (Ministro de Guerra), e Ahmed Djemal (Chefe Militar de Constantinopla), apoiados por outros políticos unionistas como Halil Bey (presidente da Câmara dos Deputados) e Mehmed Djavid (Ministro da Fazenda).

No campo ideológico isso representou uma guinada para a construção de um nacionalismo majoritariamente turco otomano dentro dos limites de um Império multiétnico, multicultural, e multirracial. O que consequentemente acarretou a exclusão de grupos minoritários do poder político, como armênios, árabes, entre que outros; que inicialmente haviam aderido ao movimento político da CUP. O que pode ser percebido nos dizeres de Eric J. Hobsbawm (1990, p.33), que “quanto mais esta (nação) se queria una e indivisa mais a sua heterogeneidade interna criava problemas”.

O acarretou no rompimento definitivo dessas populações com o governo otomano, e influenciou a formação de entidades secretas que apoiavam seus próprios projetos de nação. Thomas Edward Lawrence, oficial militar britânico, que foi um dos participantes da Revolta Árabe (1916-1918), esclarece em seu livro de memórias o panorama politico que levou os árabes a se rebelar contra seus governantes otomanos:

“A Turquia, tomada turca para os turcos – Yeni-Turan – foi o grito de guerra. Mais tarde, esta politica deveria conduzi-lo ao resgate dos seus irredenti – que eram as populações turcas submetidas á Rússia, na Ásia Central; mas antes de tudo, precisavam limpar o império das raças subjugadas, porém incômodas, que vinham resistindo ao padrão normativo. Os árabes, os maiores componentes estrangeiros da Turquia, deviam ser liquidados imediatamente. De conformidade com este pensamento, os representantes árabes foram expulsos, as sociedades árabes proibidas, e os árabes notáveis proscritos. As manifestações árabes e o idioma árabe foram suprimidos pelo paxá Enver de maneira muito mais enérgica do que o haviam sido por Abdul Hamid, antes dele”. (LAWRENCE, 2006, p. 51)

O projeto nacionalista dirigido pelo triunvirato (Djemal, Tallat, e Enver) revelou-se uma tentativa de estancar as perdas territoriais, com uma centralização administrativa e ditatorial, que nos messes precedentes a Primeira Guerra Mundial alicerçou seu alinhamento as Potências Centrais (Prússia e Áustria-Hungria).

 

Filatelia otomana um projeto político nacionalista

O Império Otomano no início da Primeira Guerra Mundial se constitui como um Estado (no tradicional sentido marxista) que atuou por meio da repressão (perseguições, torturas, exílios, etc), e dos aparelhos ideológicos do Estado Imperial (escolas, jornais, e tribunais) para disseminar um pensamento nacionalista turco-otomano. Sendo um desses aparelhos o sistema de correios otomano que passou a produzir, entre 1909-1918, selos postais de teor nacionalista, procurando despertar o sentimento de pertencimento ao Império e de lealdade ao Sultanato. Partindo dos estudos de Eduardo França Paiva (2006), sobre a importância da imagem para a compreensão do processo histórico-social, podemos inferir que os selos embora não representem fielmente o passado, pois correspondem a fragmentos ideológicos do governo que os produziram. Contudo, por serem fontes de uma riqueza impressionante, carregam “armadilhas” e “perigos” aos quais o historiador deve sempre estar atento para evitar “anacronismos”, e, portanto, se fez necessária uma apresentação sobre a instituição estatal, responsável pela produção dessas imagens.

“A imagem, bela, simulacro da realidade, não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas”. (PAIVA, 2006, p. 18-19)

Está instituição havia sido reconfigurada durante a era Tanzimat, para promover o melhoramento da interligação entre as diferentes partes do Império. Em 23 de setembro de 1840 passou por uma reorganização administrativa com o estabelecimento do Ministério Postal sob o comando de Ahmet Şükrü Bey, submetido ao Ministério do Comércio. Sendo aberta no mesmo ano em Constantinopla a primeira agência do correios otomana. Em 1863, o Império Otomano passou a usar selos postais (sobre administração de Agâh Efendi), em substituição ao antigo sistema de taxas sobre correspondência onde o ônus ficava a cargo do destinatário, isso tornou o Império Otomano o segundo estado independente a Ásia, a imprimir e utilizar selos. Em 1871, o correio otomano passou a ser identificado como Ministério dos Correios e Telégrafos, sendo submetido ao Ministério do Interior até a dissolução do governo otomano. Além da agência oficial, outras nações possuíam sistemas postais independentes que atuavam dentro do Império, como a Alemanha, Rússia, Grécia e Itália.  Após o golpe de 1913, o Ministério dos Correios e Telégrafos passou diretamente para às mãos do Ministro do Interior Mehmed Tallat, que havia sido funcionários de baixo escalão do mesmo ministério na província de Salônica (Palmer, 2013; Turkishpostalhistory, 2020).

Com o golpe de 1913, que colocou no poder o triunvirato ditatorial houve o crescimento da propaganda nacionalista turco-otomana, tendo se expandido enormemente após a entrada do país no conflito mundial; com apoio alemão, para a publicação e distribuição de panfletos, cartazes, e livros por espiões para disseminar o ódio ao “inimigo cristão infiel”. Sendo complementado com um amplo projeto de centralização administrativa entorno da cúpula da CUP, e de tentativas de reavivar a força política do sultanato, na figura de Mehmet V, despertando o sentimento de lealdade entre os súditos do Império (McMeekin, 2011). Entre os anos de 1913 e 1918, foram lançados selos pelo correio otomano com as mais diversas estampas representando o Sultão, a capital imperial (Constantinopla), bem como a vitória militar mais significativa dos otomanos durante os eventos da guerra mundial, que foi a Batalha de Galípoli em 1915 (onde os turcos conseguiram impedir uma invasão de forças britânicas e francesas na península de Galípoli); bem como representações das outras frentes de combate na guerra:

 

figura 1: Mesquita do Sultão Ahmed, selo postal de 1913.

Fonte: Arquivo do autor.

 


Figura 2-3: Mesquita de Ortaköy e fotografia de Constantinopla, selo postal de 1916. Fonte: Arquivo do autor.





Figura 4-6: A primeira representa o mapa da Península de Dardanelos/Galípoli com setas apontando as forças militares envolvidas na batalha, e a segunda representa o grandioso Palácio Dolmabanche, ambas dividem espaço com a figura do Sultão Mehmed V. A última representa soltados turcos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), selos postais de 1916-1918. Fonte: Arquivo do autor.

Partindo para a análise destes selos, é perceptível a tentativa por parte do governo da CUP, de resgatar o que considerava e idealizava ser a “grandiosidade do passado otomano”, e com isso despertar o sentimento de patriotismo/nacionalismo através dos selos utilizados para a taxação das cartas, um dos meios de comunicação mais comuns da época. Pois, de acordo com Eric Hobsbawm (1990), foi através da criação de uma propaganda, que apresentava a guerra como “defensiva”, dirigida aos cidadãos/súditos que os governos beligerantes esperavam despertar o sentimento de pertencimento a nação:

 “Contudo, é significativo que os governos beligerantes pediram apoio para a guerra não simplesmente através do patriotismo cego e menos ainda com base na glória machista e no heroísmo, mas através de uma propaganda dirigida fundamentalmente a civis e cidadãos. (...) Todos apresentaram-na como uma ameaça, vinda do estrangeiro, aos ganhos cívicos próprios de seu lado ou de seus países; todos aprenderam a apresentar seus objetivos de guerra (embora de alguma forma inconsistentemente) não apenas como a eliminação de tais ameaças, mas como, de alguma forma, a transformação social do país, no interesse de seus cidadãos mais pobres (“lares de heróis”)”. (HOBSBAWM, 1990, p. 110)

A partir desta linha de pensamento, é possível compreender a representação das mesquitas (símbolo de duplo significado, tanto religioso quanto político), do Palácio Dolmabanche (sede da corte do Sultão), e da própria capital otomana, como símbolos nacionais para os súditos otomanos, e que, portanto, eram passíveis de atrair o sentimento de lealdade para com o Estado. Paralelamente, houve ainda a tentativa de reafirmar a proeminência política do sultanato, com a representação de Mehmet V ao lado do mapa da batalha de Galípoli, aliada a uma campanha política de consolidar o Sultão como Califa e, desta forma, despertar o sentimento de pertencimento a uma comunidade muçulmana global entre os súditos de outros impérios beligerantes (McMeekin, 2011). Contudo, a tentativa de produzir um nacionalismo puramente turco no interior de um Império multicultural, multiétnico, que comportava muitas religiões, acarretou na produção de nacionalismos divergentes do estatal em diversas regiões, conjuntamente com um dos maiores genocídios da história humana, o massacre dos armênios (1915-1917) que segundo estimativas vitimou aproximadamente 800.000 mil -1.800.000 de seres humanos (Palmer, 2013; Morgenthau, 2010)

 

Considerações Finais

No decorrer do século XIX, o Império Otomano perdeu grandes parcelas de seu território, seja pela ação direta de grandes potências europeias, como Inglaterra e Rússia, seja de forma indireta, quando estas apoiavam os movimentos de independência das províncias sobre o controle otomano. Este fato demonstrou a necessidade de modernizações administrativas e militares, que possibilitassem a sobrevivência do estado otomano na era do desenvolvimento do capitalismo imperialista e liberal. Entre 1839 e 1876, reformas implementadas pelos Sultões permitiram o surgimento de uma camada de intelectuais, burocratas e militares, que formaram o Comitê de União e Progresso, e ficaram conhecidos como Jovens Turcos. Sendo responsáveis em 1908 por um golpe de Estado que substituiu a autocracia do Sultanato por uma monarquia constitucional, que por sua vez declina em 1913 em um triunvirato ditatorial (Tallat, Djemal e Enver). Desta feita surge o nacionalismo otomano, na tentativa de despertar o sentimento de pertencimento territorial dos turco-otomanos para com a região da Anatólia, em paralelo com uma campanha de valorização da cultura otomana em detrimento da cultura árabe. O que provocou a produção de selos com representações do Sultão, da arquitetura e das construções públicas e religiosas da capital (Constantinopla) e, após o inicio das hostilidades em 1914 (Primeira Guerra Mundial), a representação do soldado otomano na frente de batalha. Fazendo desse modo que os selos atuassem na disseminação de uma ideologia política, tendo como resultados o massacre de minorias cristãs em todo o território otomano, especialmente na Anatólia Oriental (caso armênio) e de minorias cristãs na costa ocidental da península arábica, gerando também em contrapartida, o surgimento do nacionalismo árabe (Revolta Árabe, 1916-1918) antagônico aos interesses otomanos. Todo esse processo, teve como resultado a derrota e dissolução do Império Otomano em 1918, em várias nações independentes, enquanto que outros territórios tornaram-se colônias das potências europeias vencedoras do conflito mundial.

 

Referências

Matheus Henrique da Silva Alcântara é graduando em história da UFCG

José Otávio Aguiar é doutor em História da UFCG

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FROMKIN, David. Paz e guerra no Oriente Médio: a queda do Império Otomano e a criação do Oriente Médio Moderno / David Fromkin; tradução de Teresa Dias Carneiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade / E. J. Hobsbawm; tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

KHATLAB, Roberto. As viagens de D. Pedro II: Oriente e África do Norte, 1871-1876 / Roberto Khatlab. – São Paulo: Benvirá, 2015.

LAWRENCE, T. E. Os Sete Pilares da Sabedoria/ T. E. Lawrence; tradução de C. Machado; prefácio de Fernando Monteiro. – 6ºed. – Rio de Janeiro: Record, 2016

MORGENTHAU, Henry (1856-1946). A história do embaixador Morgenthau: o depoimento pessoal sobre um dos maiores genocídios do século XX / Henry Morgenthau; tradução Marcello Lino. – São Paulo: Paz e Terra, 2010.

MCMEEKIN, Sean. O expresso Berlim-Bagdá: o Império Otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 / Sean McMeekin; tradução Maria Silvia Mourão Netto. – São Paulo: Globo, 2011.

SCHIAVON, Max. A frente oriental: do desastre de Dardanelos á vitória final, 1915-1918 / Max Schiavon; tradução Marcelo Oliveira Lopes Serrano. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2017.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens / Eduardo França Paiva - 2.ed.- Belo Horizonte: Autêntica, 2006. (Coleção História &... Reflexões)

PALMER, Alan. Declínio e Queda do Império Otomano / Alan Palmer; tradução Gleuber Vieira. São Paulo: Globo, 2013.

SITES:

BÂBIÂLİ BASKINI, Balkan Harbi sırasında İttihatçılar tarafından gerçekleştirilen kanlı hükümet darbesi (23 Ocak 1913). Islamansiklopedisi, 1991. Disponível em: <https://islamansiklopedisi.org.tr/babiali-baskini>. Acesso: 15 mar. 2020.

OSMANLI İmparatorluğunda Posta Teşkilatı. Turkishpostalhistory, 2008. Disponível em:<https://www.turkishpostalhistory.com/index.php/tr/m-articles/m-ottoman-empire/-m-otto-postal-history/17-organization-of-ottoman-post>. Acesso: 15 mar. 2020.

3 comentários:

  1. A leitura desse trabalho me lembrou da época da graduação, assistindo as aulas do professor Zé Otávio, a qual tive a oportunidade de cursar todas disciplinas de Oriental com este excelente professor. Uma grande inspiração para mim, sempre que possível destaco a sua importância para o meu desenvolvimento acadêmico, quando questionado quais docentes foram minhas inspirações para trilhar o caminho do magistério. Após essas considerações, retomo ao trabalho com intuito de questionar como a longevidade do Império Otomano e a falta de adequações na sua estrutura política foram preponderantes para sua derrocada? Além disso, se faz necessário observar as semelhanças no processo de declínio de outros impérios que conquistaram grandes extensões de terras e sofreram os efeitos de uma estrutura política que não conseguia abranger todos os povos que estavam sobre o seu julgo. Principalmente, no sentido de compreender as diferentes manifestações culturais existentes em seu território. Nesse sentido, como esses conflitos internos decretaram a queda de um Império de cinco séculos?

    Ronyone de Araújo Jeronimo

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  2. Boa noite Ronyone! Obrigado pelas palavas generosas, também sinto muita falta de sua presença arguta e inteligente em minhas aulas! Sua pergunta é muito boa. Acredito que um sistema burocrático fechado, por mais que ocorram modificações internas, tende a sucumbir mais cedo ou mais tarde caso não se adapte aos desafios novos e inéditos que certamente enfrentará. O devir histórico é indeterminado, embora influenciado. Isso empresta à história certa dose de imprevisibilidade, que, como paradoxo da insegurança aparente que produz, é também nossa grande esperança. As coisas não estão determinadas ou fadadas a serem dessa ou daquela forma. Temos liberdade de criar novo possíveis no horizonte histórico e social dos homens no tempo e no espaço. Assim, se a resposta ao desafio for criativa e eficiente, uma sociedade pode se reinventar e superar o obstáculo, caso não seja, isso pode custar caro. Certos apegos a tradições burocráticas e militares tem esse preço. Vale lembrar que o Império Otomano começou a perder poder no fim do século XVI, quando em 1683, o exército tentou, sem sucesso, tomar a cidade de Viena, na Áustria. A batalha deu início a um século de guerras com os países europeus e o Império Otomano perdeu parte significativa de seu território. A queda, em definitivo, ocorreu, entretanto, somente na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando os otomanos aliaram-se à Alemanha e foram derrotados. Somente em 1923, surge a Turquia, formada por um grupo remanescente de turcos. Há certas regularidades nos processos de desatualização e fragilização de grandes impérios, quase todos eles, a meu ver, relacionados à dificuldade de adaptar-se às mudanças. O esgotamento de modelos econômicos e recursos naturais, o crescimento populacional, a corrupção e o êxodo rural costumam ser causas frequentes.

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  3. Bom dia Ronyone!Complementando o que já foi dito pelo professor, José Otávio, a política otomana no século XIX pautada em um projeto de mordernizaçao administrativa e de aproximação gradual com o Ocidente (reapresentado neste caso, por Inglaterra, Alemanha, e França), na tentativa de realizar um aparente modificação estrutural no Império, ficando este período conhecido como Era Tanzimat, não teve o resultado esperado,que era a manutenção da integridade territorial.Devido a fatores internos, como convivência de diferentes grupos étnicos em conflito com o poder central, aliado ao próprio conservadorismo da elite governante. Bem como externos, os interesses imperialistas que movimentaram as potências europeias na conquista de mercados consumidores e matérias-primas para abastecer as indústrias.

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