AS MARCAS DO GENOCÍDIO ARMÊNIO NA HISTÓRIA E NA LITERATURA
“No entanto, os armênios têm um talento
especial para a dor.”
Lionel Shriver
Neste ensaio procuramos
tratar de como a violência cria cicatrizes físicas e simbólicas na vida de suas
vítimas [Seligmann-Silva, 2016]. Para observar isso, articulamos a literatura e
a história [Chartier, 1999]. Por parte da literatura, empregamos o livro da
escritora estadunidense Lionel Shriver, Precisamos
falar sobre Kevin [no original, We
need to talk about Kevin, lançado
em 2003] e na historiografia buscamos os acontecimentos relacionados ao
genocídio armênio ocorrido no início do século XX pelo império Otomano. Na
narrativa de Shriver, a identidade armênia dos personagens aparece como uma
articulação entre a violência sofrida por esse povo e contexto da violência que
ronda os acontecimentos do livro.
A epígrafe deste
texto é a conclusão à qual chega Eva Khatchadourian, personagem fictícia de
ascendência armênia, ao ver a reação tranquila de sua mãe, quando comenta sobre
homicídios cometidos pelo próprio filho adolescente. Mas o que leva um povo ter
a dor associada às suas experiências? Que dor é essa que não passa e se torna
marca distintiva de uma identidade?
Na dramática
história, Eva perde a filha caçula e o marido - assassinados pelo filho mais
velho, Kevin, que além dos familiares, comete um massacre na escola em que
estuda, vitimando outros jovens. Apesar da narrativa chocante, nosso intento
não é tratar dos acontecimentos em torno dos crimes, mas perceber como o
“sentir-se armênio” acaba moldando muitas das questões identitárias dos
personagens encontrados naquela narrativa de ficção. Que dor é essa que os
armênios entenderiam? Ou melhor, teriam “um talento especial”? Trata-se de
perceber que o passado atravessa as experiências presentes das pessoas,
afetando aspectos que ultrapassam os limites do grupo e se tornam um elemento
reconhecível mesmo entre aqueles sem relações diretas com a comunidade armênia,
refletindo na ficção literária.
A convergência
da violência na literatura e na história:
o genocídio armênio
A dor dos
armênios pode ser compreendida ao se conhecer a história desse povo, e
principalmente nos eventos em torno do genocídio ao qual foram submetidos pelo
Império Otomano no início do século XX [Almeida, 2012]. É necessário um breve
desvio na busca de uma delimitação do que seja um genocídio. Essa, como outras
tantas palavras, muitas vezes é utilizada de forma indiscriminada e perde a
intensidade do que quer expressar. O termo genocídio
foi pensado primeiramente na Polônia, pelo jurista judeu Raphael Lemkin, sendo
um híbrido da palavra grega genos (povo,
tribo, raça) e da latina cide (matar
ou matança) [Irvin-Erickson, 2017]. Não se trata de querer converter e mudar o
outro, mas de erradicá-lo, é agir com a finalidade de silenciar sua voz e
eliminar sinais de sua existência por meio de violência, de assassinato e do
extermínio. Não é somente a história que abarca esses eventos, pois a
literatura não se exime de retratar esses acontecimentos e suas consequências
na vida das pessoas direta ou indiretamente envolvidas [Florêncio &
Pinheiro-Mariz, 2019].
Os armênios,
possuidores de um idioma, religião e costumes próprios, foram vítimas de
sucessivas manifestações de violência do Império Otomano, cujo ápice se insere
entre os anos de 1915 e 1923. Foi uma sequência de manifestações de brutalidade
com a finalidade de tirar de seu meio aquele grupo de pessoas diferentes de si
[Summa, 2007]. Este foi o genocídio mais longo da história, pois teria se
desencadeado em 1878, com o princípio da questão armênia, passando pelo
massacre ocorrido em 1895 e estendendo-se pela traição dos Jovens Turcos [grupo
reformista], entre 1905-1907. Seu momento mais sanguinário foi em 1915, com uma
diáspora forçada e os massacres executados pelos Jovens Turcos, e apenas
terminou entre 1921-1923, quando povos armênios e povos gregos foram vítimas
dos turcos que tentavam dizimar essas populações [Fernandes, s.d; Martins,
2007].
Somente para
exemplificar como o genocídio é sentido de maneiras diferentes por grupos
sociais distintos, vejamos uma discussão entre dois personagens do livro Precisamos falar sobre Kevin, Eva
Khatchadourian, de ascendência armênia, e seu marido, Franklin Plaskett,
norte-americano sem quaisquer vínculos com a Armênia. A discussão gira em torno
dos sobrenomes para os filhos, enquanto Eva quer manter viva a memória de uma
identidade armênia resultado da violência e de uma diáspora, seu marido encara
a questão como um fato do passado, que não justificaria ser lembrada diante da
prosperidade e bem-estar vividos na sociedade norte-americana.
“[Eva]
Cruzei os braços e convoquei a artilharia pesada: ‘Meu pai nasceu no campo de
concentração de Dier-ez-Zor. Os campos eram infestados de doenças e os armênios
mal tinham o que comer, nem mesmo água para beber - foi um espanto ele ter
sobrevivido, porque seus três irmãos não aguentaram. O pai do meu pai, Selim,
foi fuzilado. Dois terços da família da minha mãe, os Serafians, foram
obliterados tão completamente que não sobrou nem mesmo a história deles. Você
me desculpe por estar comparando nossas famílias, mas os anglo-saxões não são
bem uma espécie em risco de extinção. Meus antepassados foram sistematicamente
exterminados e ninguém nunca fala sobre isso, Franklin!’
-
Um milhão e meio de pessoas!, você entoou, gesticulando feito um louco.
-
Você sabia que foi o que os Jovens Turcos fizeram com os armênios, em 1915, que
deu a Hitler a ideia para o Holocausto? Fuzilei você com os olhos.
[Franklin]
- Eva, seu irmão tem dois filhos. Só aqui nos Estados Unidos há pelo menos um
milhão de armênios. Ninguém está prestes a desaparecer” [Shriver, 2007, p.
157].
Um
mesmo assunto é sentido de modo particular entre os personagens, enquanto no
discurso de Eva percebemos a necessidade de uma constante rememoração do
passado, uma recusa deliberada a esquecer; o marido justifica um apagamento do
passado tendo em vista a situação próspera e tranquila em que viveriam na
América do Norte. Teria a prosperidade econômica força suficiente para apagar o
passado, os traumas e as marcas da violência? Milhares de armênios se
estabeleceram nos Estados Unidos, entre o final do século XIX e início do
século XX. E muitos desses grupos, não apenas nos EUA, mantêm vivas as
lembranças dos crimes cometidos pelos turcos na sua terra natal. Como diz Eva
Khatchadourian para seu companheiro: “Olha só, desde que me conheço por gente
que me martelam na cabeça que um milhão e meio de armênios foram trucidados
pelos turcos” [Shriver, 2007, p. 278]. Nesse exercício de constante
rememoração, o indivíduo cresce e partilha de muitos dos sentimentos do grupo à
qual pertence.
Identidades
atravessadas por marcas da violência
As
identidades compõem o indivíduo enquanto ele/ela se reconhece e estabelece
sentido de pertencimento com um grupo [Capitão e Heloani, 2007]. Mas esses
grupos habitam em lugares diferentes, em temporalidades e locais diferentes,
não são fixos. A violência por qual os armênios tiveram que passar no final do
século XIX e início do XX, mais do que relatos de sobrevivência e persistência
de um povo, passa a ser um elemento que alicerça a identidade. Durante a dominação
otomana, o “sentir-se armênio” pode estar associado ao sentimento de
religiosidade, não somente por se tratar de cristãos entre um grupo
majoritariamente muçulmano, mas também por se tratar de um cristianismo
específico: o cristianismo armênio [Porto, 2015].
Em
um contexto pós-diáspora, a identidade armênia parece se constituir a partir de
fragmentos da cultura que os sobreviventes do genocídio carregaram consigo para
diferentes partes do mundo. O que é valorizado não é apenas o que remete ao país
Armênia, mas uma constante lembrança da violência sofrida por esse povo. Talvez
possa parecer exagero, mas a experiência traumática sofrida pelos armênios
proporciona àqueles que não negam sua ascendência, uma percepção diferente das
outras pessoas, como se o passado ainda estivesse presente para eles, não
permitindo que seja esquecido ou seu trauma seja, de certa forma, atenuado
[Paverchi, 2015]. Eis o que afirma Eva sobre esse sentimento de sentir o
passado no presente atual:
“Mas,
tendo chegado tão perto do extermínio, num passado bem recente (sei que você já
cansou de me ouvir falar nesse assunto), poucos armênio-americanos partilham da
presunçosa sensação de segurança dos conterrâneos” [Shriver, 2007, p. 66].
Após
perder casas e bens, ver o assassinato de filhos e pais, presenciar famílias
destroçadas e abandonar tudo que tinham para um novo começo, os armênios são
retratados sem uma ilusão de segurança, como se a qualquer momento, quando
menos se espera, a violência poderia chegar, seja no seio da família ou na
tranquilidade da comunidade. Pode ser interessante fazer uma analogia entre a
vida de Eva Khatchadourian e a vida do povo armênio, ambos sofrem dentro da
segurança de seus lares, a violência os transforma, deixa marcas profundas em
sua vida e obriga-os a seguir como sobreviventes. Eva perde a filha e o marido.
Quantos filhos e cônjuges foram massacrados pelos turcos? O genocídio atingiu
mais de um milhão de armênios que viviam no Império Otomano, de uma população
total de quase dois milhões. Apesar dos expressivos números, os acontecimentos
são até hoje negados pelo governo da Turquia, que os tratam como conflitos de
guerra [Santos & Guimarães, 2015].
Os
acontecimentos relacionados ao genocídio e a diáspora armênia podem revelar
muito da peculiaridade dos armênios, que evocam para si caraterísticas como de
resistentes, sobreviventes, dotados de uma natureza trágica e como vítimas. São
essas as marcas que conduzem as histórias e relatos dos armênios, tornando-se
elementos formadores de identidades, tanto se referindo ao genocídio como para
narrar a história da própria nação: a concepção de vítima traz à tona as
injustiças que teriam sido cometidas e a imagem de um grupo de resistentes
ressalta que, apesar da violência sofrida, os armênios não teriam desistido e
se mantiveram firmes diante do inimigo [Porto, 2011].
A
negação da história marca profundamente a vida dos sobreviventes do genocídio e
de seus descendentes. Não é um desejo desenfreado por vingança, mas por
reconhecimento, para que então sejam feitas as devidas reparações ao povo
armênio. A negação turca tira quaisquer formas de visibilidade das vítimas,
tornando-as simples números em uma longa lista de mortos. O negacionismo é
instrumentalizado como mecanismo de politização de uma narrativa com relação a
um tempo passado. Ao não assumir os crimes cometidos, o governo genocida mantém
abertas as feridas das vítimas, em uma constante repetição simbólica da
violência real perpetrada contra aquelas pessoas. O negacionismo é apenas um
caso particularmente extremo de uma prática que acompanha o gesto genocida.
Esse sempre visa o extermínio do grupo considerado inimigo para impedir a
difusão de testemunhos do terror cometido, na tentativa de apagar os rastros da
violência praticada e quaisquer tentativas de retaliação futura [Moraes,
2011].
Eva
Khatchadourian ao buscar convencer o filho, Kevin, acerca de sua ascendência
armênia e uma esperada identidade, se vê contrariada ao perceber que o jovem
não se reconhece enquanto descendente de um povo estrangeiro, mas adota para si
a identidade do grupo em que vive:
[Eva]
“Você também é armênio, você sabe.”
Kevin,
no entanto, discordou. ‘Eu sou americano’, afirmou, usando o tom zombeteiro de
quem declara o óbvio, como por exemplo: ‘Eu sou uma pessoa’ e não um porco
selvagem” [Shriver, 2007, p. 281].
Fazer
parte de um grupo social pode indicar o modo como um dado grupo compreende o
mundo, o que por sua vez delineará seu modo de viver e encarar as outras
pessoas. Os acontecimentos do passado passam a ser entendidos de forma distinta
de acordo com as identidades assumidas ou negadas, pois essas permitirão que se
considere elementos, narrativas e experiências. As atitudes, no que se refere
ao outro, são dependentes das representações que possuímos deste outro. Essas
representações interferem nas interpretações da realidade, nas decisões e
reações do cotidiano. Como as identidades não são fixas, orbitam entre a
completa negação e ignorância quanto ao passado e a rememoração constante e a
militância pelo reconhecimento dos crimes cometidos.
Podemos
nos questionar sobre como as identidades dos diferentes grupos armênios
espalhados na diáspora foram mescladas às identidades nacionais dos países em
que vivem. Como os descentes dos armênios sobreviventes do genocídio encaram o
passado de seu povo? Até onde permitem que suas identidades sejam atravessadas
a partir de um autorreconhecimento como armênio. Talvez ajam como Kevin
Khatchadourian, que apesar de conhecer o violento passado dos armênios,
simplesmente renega essa história e se reconhece enquanto possuidor de uma
identidade diferente daquelas de seus antepassados. Seja como for, o genocídio
armênio ainda deixa marcas. E a negação desse acontecimento não permite que
haja uma cicatrização das feridas abertas e expostas.
Conclusão
O
uso da literatura comercial, como é o caso de Precisamos falar sobre Kevin,
funciona como um instrumento para observarmos as articulações entre a
ficcionalidade e a passado. Preferimos fazer intencionalmente o uso de uma obra
de ficção que manipulasse essas questões. Encaramos a ficção não apenas como
invenção literária, mas como portadora de nuances do “mundo real”. Na obra, a
dor perpassa por todos os personagens, nenhum está imune a ela. E a história
armênia aparece como um lembrete de uma dor constante que pode assolar os
indivíduos e da necessidade de sobrepujá-la. A identidade armênia de Eva
Khatchadourian parece ser utilizada como uma preparação aos futuros atos
homicidas de seu filho. O sofrer, o sentir-se vítima e resistir à violência
tornam-se elementos que constituem o sujeito tanto na ficção literária como no
mundo aparentemente real em que vivemos.
Referências Bibliográficas
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Paiva do Monte é licenciado em História (UEPB) e mestre em história social
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Bom dia, gostaria de primeiramente parabenizá-los pelo seu trabalho, especialmente por relacionar a literatura com a história do genocídio armênio. Infelizmente ainda não li o livro "Precisamos falar Sobre Kevin", mas durante análise da obra foi possível identificar Quais foram os fatores responsáveis pela negação, por parte do personagem Kevin, de sua descendência Armênia? Se sim, quais?
ResponderExcluirLuana de Oliveira Matias
Olá!
ExcluirO personagem não se sentia parte do grupo armênio, adotando para si uma identidade estadunidense. Negava a história de sua família (importante para outros personagens), talvez, como reflexo de seus atritos com a mãe (que era de ascendência armênia).
Leonardo Paiva Monte
Muito interessante a proposta de trabalho de vocês, bem como as considerações apresentadas. Acredito que as inter-relações entre História e Literatura são sempre pertinentes e instigantes, especialmente no Ensino de História.
ResponderExcluirMeu questionamento é o seguinte: considerando que a obra literária que abordaram, "Precisamos falar sobre Kevin", trata de temas da História recente, em que contexto de conteúdo das aulas de História vocês sugerem o trabalho com essa obra?
Agradeço a atenção.
Atenciosamente Sandiara Daíse Rosanelli
Olá, parabéns pelo excelente texto!
ResponderExcluirNeste momento, as hostilidades entre Armênia e Azerbaijão se intensificam, com o envolvimento, embora não declarado, da Turquia no conflito. Apesar das narrativas de ambos os países estarem um tanto confusas quanto às razões do conflito, é notório o atrito entre armênios e turcos. Assim, pergunto aos autores, quais as possíveis causas desse genocídio não ser estudado em aulas de história na educação básica, quando se tem uma comunidade armênia tão relevante no país? Não estaríamos incorrendo em omissão, ao ignorarmos, no âmbito educacional, a memória desse genocídio?
Dalgomir Fragoso Siqueira (UPE)
Olá!
ExcluirA história, como estudada aqui, ainda foca nos acontecimentos Europa/EUA, apesar de pequenas tentativas de quebrar este ciclo. Vejo esta omissão à história armênia como uma questão de poder (os armênios como um grupo minorizado) e de controle de narrativas (não é uma unanimidade a existência do genocídio, havendo países que não o reconhecem. Os EUA, por exemplo, apenas reconheceram em 2019).
Mesmo no ensino superior, pouco se fala desse acontecimento.
Leonardo Paiva Monte
Prezados, boa noite.
ResponderExcluirO Brasil possui uma comunidade Armênia muito significativa, com destaque para o estado de São Paulo, no qual a comunidade conseguiu após uma certa mobilização, renomear uma estação da linha azul do Metrô (em 1985) para Armênia (na Zona Norte da Capital Paulista), a antiga Ponte Pequena. Com o conflito que irrompeu recentemente entre Azerbaijão e Armênia, esta última passou a ter certa atenção dos noticiários. Fora a afinidade religiosa, que outras ligações existem entre a Turquia (autora do covarde extermínio armênio no passado) e o Azerbaijão no que se refere à oposição a Armênia?
Victor Gonçalves de Matos
Olá!
ExcluirO Azerbaijão tem questões étnicas e territoriais contra a Armênia. São pequenos países com questões pendentes quanto a suas fronteiras.
Por sua vez, a Turquia é um inimigo histórico da Armênia: realizou um genocídio contra aquele povo, ocupou territórios, quis apagar esse povo. E, ainda hoje, não reconhece a violência genocida do passado.
Os turcos fomentam os conflitos de azerbaijanos e armênios tendo em vista enfraquecer um inimigo em comum.
Leonardo Paiva Monte
Grato pelas respostas.
ExcluirVictor Gonçalves de Matos
Primeiramente gostaria de parabenizá-los por essa temática tão relevante. Enquanto lia e refletia me fazia o seguinte questionamento, e passo também a vocês: Por que os materiais de ensino, em especial os livros de História, não trazem essa temática como ponto de discursão?
ResponderExcluirMe parece que esse negacionismo perpassa também a sala de aula, da escolha do que ensinar ou não. A negação indenitária de Kevin pode ser interpretada como um novo genocídio indenitário , ou seja, a morte exponencial da identidade de um povo pelo não reconhecimento do fato passado?
Mais uma vez, parabenizo pelo texto, muito relevante.
Matheus Felipe Araujo Souza