Leonardo Candido Batista

REPRESENTAÇÕES COSMOGÔNICAS NO ANTIGO EGITO

 

Um dos grandes problemas que permeiam os estudos sobre a religião do Antigo Egito é a imensidão de deidades, algumas aparentemente conectadas devido ao sincretismo que esse panteão sofreu ao longo de sua história, com fusões, mudanças e uma justaposição de deuses, que poderiam ou não estar ligados a figura do rei (mais tarde conhecida como faraó) em determinado período. Basta olharmos para os templos, mastabas e as pirâmides, que podemos entender como o cotidiano religioso era importante nessa sociedade. Essa imagética por muito tempo fomentou diversas interpretações fantásticas e exageradas sobre a religiosidade nilótica.

A religião egípcia era confusa até mesmo para seus sacerdotes e doutos, o que explica essa diversidade de interpretações. Uma gama de deidades e cosmogonias, que mesmo partindo de um denominador comum, possuíam estruturas divergentes conforme a temporalidade e a localidade. Renata Tatomir (2017, p. 7-8) bem explica que o termo léxico “religião” está mais para um conjunto de paradigmas de uma visão grega superficial do mundo egípcio, sendo esse conceito inexistente nessa sociedade. Dessa forma, eles expressavam o que era percebido, mas inexplicável para fenômenos naturais e metafísicos no cotidiano.

Observamos esses exemplos nas tumbas, onde não parece ter uma separação estrita entre o natural e o supernatural, com as representações dos trabalhos diários que eram feitos: caça, pesca, preparar o solo. Jaroslav Černý (1953, p. 39) comenta que é impossível traçar padrões de crenças que sejam uniformes e lógicas em todos os detalhes, sendo essa válida para todo o Egito, como uma corrente de pensamento única que nunca existiu. A religião egípcia não foi criação de um só pensador, mas sim uma consequência de divergências políticas e culturais locais que nunca foram fortes o suficiente para eliminar todas os credos, ou uni-los em um sistema teológico geral, que conectasse todas as pessoas e lugares CERNÝ (1953, p. 39).

Devemos estar cientes para essas interpretações nas concepções cosmogônicas e cosmológicas, pois é muito comum que haja confusão em tais aspectos. Leonard H. Lesko (2002, p. 110) explica que de modo geral, os antigos egípcios estavam cientes dessas diferenças, sendo que é possível que tenham tido suas preferências pessoais entre elas, mas não existindo ideias especificas exigidas de maneira dogmática, já que a frequência de descrições conflitantes aparece concomitantemente. 

Fontes

As fontes referentes ao Egito Antigo são mais frequentes que as de outras sociedades da antiguidade, muito por conta da areia do deserto ter preservado os papiros com tais informações (embora devemos lembrar que as condições climáticas são diferentes no norte e no sul, sendo que o clima seco e árido do Alto Egito, garantiu que esses sítios tivessem uma melhor preservação do que na região do delta), fora a cultura material remanescente nas esculturas e nos túmulos, que nos informam muito do cotidiano e dos aspectos religiosos existentes, ou que estavam mais em voga na época. De todo modo, existe uma dificuldade devido a natureza dessas fontes, que em sua grande parte é fragmentária e desigual, e no caso da religião o problema é muito mais evidente, já que existiam diversas interpretações, até mesmo entre os sacerdotes encarregados dessas compilações.

Rosalie David (2011, p.40) comenta que o legado deixado pelos antigos egípcios abrange uma variedade de monumentos bem preservados, artefatos, restos humanos, uma extensa literatura religiosa e secular. Todas essas fontes nos possibilitam compreender e interpretar as ideias e os conceitos, que em alguns casos se originaram há cinco mil anos. Contudo existem poucos fatos contestados no estudo da cultura egípcia: na melhor das hipóteses, podemos conseguir apenas uma visão parcial e separada do mundo moderno por uma grande extensão de tempo, e em vários casos, podemos chegar a apenas conclusões imprecisas (DAVID, 2011, p. 40).

As fontes relacionadas ao mundo egípcio, circunscreviam todo o aparato estatal, real, social e religioso. Como muito bem lembra Claude Traunecker (1995, p. 13-14) essas fontes ligadas a religiosidade podem dividir-se em duas categorias: profanas e religiosas. A primeira compreende os objetos, monumentos, ou documentos cuja finalidade não é cultual, mas os deuses estão presentes. Já as profanas, os documentos literários ocupam lugar à parte, destacando textos qualificados como “contos”, que tiram sua inspiração no mundo divino, e glosam mutações políticas, culturais e religiosas. Por fim os ensinamentos, que eram uma prática muito antiga, esboçam geralmente um personagem em um conjunto moral que transmite ao outro seus preceitos. Esses contos erigem o painel de uma sociedade cujos ideais se fundam nas relações entre os deuses e os homens. As fontes mais especificamente religiosas comportam os objetos e monumentos em relação direta com o culto oficial, um culto privado, ou qualquer manipulação que se refira ao imaginário dos egípcios (TRAUNECKER, 1995, p. 14).

Os remanescentes dos monumentos e de outros aspectos da cultura material, podem ser observadas nos sítios arqueológicos e em outros objetos bem preservados, sendo os templos, estelas, tumbas, e as pirâmides, exemplos que por muito tempo inspiraram interpretações fantasiosas na mente dos viajantes e dos primeiros estudiosos imbuídos de vieses eurocêntricos e orientalistas. Roselie David (2011, p. 46) comenta que o conteúdo da tumba fornece uma riqueza de informação a respeito das crenças e dos costumes funerários, assim como a vida diária. Embora as práticas religiosas cotidianas, eram bem menos representadas por artefatos, mesmo sendo descobertos altares, bancadas de oferendas e outros utensílios de culto em ambiente doméstico.

As fontes literárias são fundamentais para interpretarmos as variações cosmológicas e cosmogônicas, sendo que em muitas delas podemos encontrar como os antigos egípcios a entendiam nas múltiplas faces de sua longa história, contendo diversas mudanças e características de um texto para outro. As principais fontes na qual podemos encontrar informações sobre essa mitologia da criação são: Os Textos das Pirâmides, os Textos dos Sarcófagos, o mais conhecido pelo senso comum como Livro dos Mortos, e a Pedra de Shabaka.

Claude Traunecker (1995, p. 14-15) descreve concisamente as principais características dessas três primeiras compilações, sendo que os Textos das Pirâmides ornam as paredes dos aposentos funerários dos reis e rainhas do fim das dinastias V e VI, formando um conjunto de 759 capítulos de extensão muito variável. Mais tarde (aproximadamente no Reino Médio), esses textos não estão mais no bojo da salvação real, mas podemos encontrá-los em tumbas particulares, esses são os chamados Textos dos Sarcófagos, pintados nos esquifes dos altos funcionários do Estado, pegando empréstimos dos Textos das Pirâmides.

Essa compilação conta com 1.185 capítulos muito reutilizados a partir do Novo Império no Livro da Saída ao Dia, composto de 192 capítulos e mais conhecido sob o nome de Livro dos Mortos (TRAUNECKER, 1995, p. 15). A Pedra de Shabaka é uma compilação da cosmogonia de Mênfis que data da XXV dinastia (por volta de 700 a.C.). O nome deriva de um faraó que teria encontrado um pergaminho com o mito sendo devorado pelos vermes, assim ordenando uma cópia para a substituição. Considera-se que o texto dessa passagem date de pelo menos da XIX dinastia, mas não podemos estipular com precisão, devido a fluidez e a as mudanças que essas mitologias sofreram ao longo do tempo.  

Cosmologias e Cosmogonias

No sentindo humanístico, cosmologias e cosmogonias estão inclinadas para a explicação de mitos relacionados a criação do universo. Basicamente a palavra cosmologia seria como o estudo da natureza dos cosmos, e cosmogonia sobre a criação divina, sendo que esse conceito e o da colina sagrada parecem estar presentes em todos os relatos cosmogônicos que analisaremos. No Antigo Egito vemos essa explicação com um demiurgo criando a partir das águas primordiais. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p. 73) explicam que a ação do período faraônico em relação ao pensamento da criação e religioso era simplesmente embutida na iconografia, linguagem e ritual, sendo apenas nos períodos ptolomaico e romano, que esse processo de cosmogonia começou a ser regularizada e descrito como uma narrativa explicita. Todavia, essa compilação em um período muito posterior de sua base teórico, teve sua corporeidade modificada ao longo da duradoura história egípcia.

Leonard Lesko (2002, p. 110-111) exemplifica bem essas modificações, mas conceitualizando que quase a totalidade mitológica pode ser encontrada no momento de união do Alto e do Baixo Egito por Namer (por volta de 2950 a.C. ou 3110 a.C.), sendo que a mitologia existente foi sendo remodelada e reempregada de maneira a explicá-los, assim como uma nova sendo feita com o mesmo propósito. Gradualmente, ou talvez rapidamente, os mitos locais de todas as partes foram combinados em um sistema, e as divindades locais de diferentes regiões, organizadas em uma hierarquia (LESKO 2002, p. 111).

No entanto para Henri Frankfort (2012, p. 19) a discussão sobre a multiplicidade de abordagens para uma única divindade cósmica necessita de um complemento; devemos considerar a situação na qual um único problema e a relação de vários fenômenos naturais, na qual podemos chamar “multiplicidade de respostas”. Como por exemplo, o problema criacionista da origem da existência, sendo que isso no Egito não era um problema intelectual em primeiro plano. Pelo contrário, era intimamente relacionado para a existência do homem (FRANKFORT, 2012, p. 20).

Roselie David (2011, p. 118) explica que antes da criação houve um estado de não existência, caracterizado pela escuridão total e águas infinitas. A partir daí, emergiu um criador que estabeleceu o universo; contudo, o ato de criação não obliterou o estado de não presença o qual permaneceu fora dos limites do mundo criado,  mas o penetrou sob a forma do sono e da morte, que representavam um retorno temporário às profundezas do cosmos.

Mesmo existindo um vasto panteão local de divindades, essa questão mais cósmica estava presente em todos os lugares para essa sociedade, como argumenta Jaroslav Černý (1953, p. 41) a maneira como os egípcios viam essas forças (acima da Terra, céu e ar, das cheias do Nilo, do sol e da lua), eram mais conceitos personificados na forma humana, que deram origem a um número de deidades cósmicas de tais importância que não estavam ligadas a nenhuma localidade definida, estando presente em todos os lugares, sem a necessidade de uma organização cultual ou templo. O ato da criação para Claude Traunecker (1995, p. 97) faz parte de um desígnio, de uma intenção deliberada do demiurgo, a consequência nesse espaço material foi o princípio da Vida-ankh, sendo o mesmo saído do criador.

Cosmogonia de Heliópolis

Talvez o mais conhecido mito da criação seja o heliopolitano, que geralmente vemos exposto quando existe alguma discussão sobre religião egípcia, e referências sobre essa cosmogonia  podem ser encontradas nos Textos das Pirâmides. O nome Heliópolis é derivado do grego em referência ao culto solar existente nessa região, mas em egípcio a cidade era conhecida como Iwnw.

Nesse mito podemos observar uma enéade (grupo de nove divindades), a presença de um demiurgo denominado Atum (que pode algumas vezes aparecer como sendo Rá), iniciando o processo da criação com base no inanimado das águas primordiais, que está relacionada a um tipo de estado caótico e abstrato, onde começa a moldar a ordem dando vida a outras. Leonard Lesko (2002, p. 113) comenta que diversas versões da história heliopolitana podem ser reconstruídas a partir das alusões encontradas nos textos de diferentes períodos.

Todos eles começam com Atum (“o todo” ou “o completo”) ejaculando de dentro de si mesmo Shu (“ar” - masculino) e Tefnut (“umidade” - feminino). Shu e Tefnut, por sua vez, geram Geb (“Terra”- masculino) e Nut (“Céu” - feminino). Na Geração seguinte. Geb e Nut dão origem a dois filhos e duas filhas, e o número crescente de irmãos inevitavelmente conduz ao conflito (LESKO, 2002, p. 113). Existem outras versões dessa narrativa mitológica, onde Atum da vida a Shu cuspindo-o, e à Tefnut vomitando-a. Renata Tatomir (2017, p. 11) deixa claro que todo o mito da criação egípcio começa com a crença básica que antes do início das coisas, existia esse abismo líquido primordial (em todo lugar, interminável, sem limites ou direções).

 


Figura 1 – Enéade Esquematizada

Fonte: http://www.globalegyptianmuseum.org/glossary.aspx?id=147

 

Roselie David (2011, p. 122) ainda explica que em Heliópolis, Rá assumiu o culto e adquiriu as características de Atum, um deus anterior que tinha iniciado toda a criação. Sendo assim, Rá-Atum  tem o papel criador emergindo do grande oceano primordial (Nun), trazendo a luz para o estado das trevas e não existência. Ele assumiu a forma de uma garça conhecida pelos egípcios como Bennu, que voou da escuridão pousando em uma rocha, onde abrindo o seu bico solta um grito que rompe o silêncio da não existência. Esse bradado seria o processo criativo que determinou o que deveria ou não ser, Rá-Atum também criou um poleiro, que segundo os sacerdotes heliopolitanos, tornou-se o local de seu templo. Nessa localidade um amuleto conhecido como pedra Benben era considerada a verdadeira alcândora rochosa, assumindo a forma de um pilar terminando com um piramidion (pedra em forma de pirâmide), que provavelmente era coberto de ouro e refletia a luz do sol ao amanhecer (DAVID, 2011, p.122).

Muito já foi ponderado sobre a magnitude e o esplendor das pirâmides, vemos explicações desde alinhamentos estrelares a feitos sobre-humanos, mas o mais provável é que a construção desses monumentos seriam uma recriação imagética do monte Benben, onde Atum começa a arquitetar mundo com base no caótico. Antes da criação da barragem de Assuã, as pirâmides podiam ser vistas com uma certa protuberância, como se estivessem emergindo das águas, sendo que essas representações do mitológico incorporadas à realidade eram muito bem elaboradas pela sociedade egípcia. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p. 52) comentam que esse monte primordial talvez possa representar o sêmen de Rá-Atum, servindo como primeiro protótipo do obelisco e até das pirâmides.

Baseando-se nessas conexões, a pedra angular localizada no topo da pirâmide ou obelisco era conhecida como benbenet. Acredita-se que a rocha original de Heliópolis, era onde raios do sol nascente primeiramente caiam, e o culto parece ser tão antigo quanto a primeira dinastia. A ave representante dessa cosmogonia tem uma certa semelhança com outro pássaro mitológico, que de certa forma também representava o sol. O nome benben deriva do verbo egípcio meben (surgir), e foi um protótipo da fênix grega. Pode haver uma conexão etimológica entre as duas aves, e certamente existem similaridades distintas na ligação desses animais com o sol e o renascimento, embora outros aspectos da lenda de fênix sejam bastante divergentes (SHAW, NICHOLSON, 2002, p.53).

Figura 2 – Representação da ave Bennu

Fonte: https://www.historymuseum.ca/cmc/exhibitions/civil/egypt/egcr09e.html

 

Aparentemente essa enéade baseava-se em uma representação dos elementos essenciais para a sociedade do Antigo Egito. Podemos observar elementos abstratos e deuses cuja representação pode estar relacionada a naturalidade das coisas (Ar, umidade, terra e céu). Renata Tatomir (2017, 13) relata que as cinco primeiras divindades (Atum, Shu, Tefnut, Geb e Nut) eram forças divinas animadas que representavam as forças vitais dos elementos da natureza, enquanto os outros quatro (Osíris, Ísis, Seth e Nephtys) correspondiam por elementos políticos. Para os antigos egípcios, a ordem natural e política surgiram ao mesmo tempo, e eram meramente facetas distinguidas da mesma ordenação cósmica. O processo da criação continuou até tudo estar completo no mundo, e todos os deuses e deusas correspondentes a esse fenômeno viessem a existir (TATOMIR, 2017, p. 13).

É no mito de Heliópolis que encontramos o episódio do conflito entre Osíris e Seth, na qual o primeiro é desmembrado pelo irmão. Ísis no papel de esposa e irmã dedicada, sai em busca das partes do marido que estavam espalhadas por localizações geográficas conhecidas pelos egípcios, relacionadas as Duas Terras e algumas regiões do Oriente Próximo. A perseverante Ísis consegue reunir os pedaços do corpo de seu amado a tempo de gerar Hórus, que tem um papel de vingador tentando restabelecer o trono de sua linhagem. Existem várias versões da luta de Hórus e Seth, algumas inclusive com certo tom humorístico e sarcástico, mas em suma essa batalha é sempre destacada com a perda do olho do deus falcão e o triunfo sobre o seu ambicioso tio.

Essa luta entre os dois irmãos, pode representar como argumenta Leonard Lesko (2002, p. 13) o conflito da natureza entre o fértil vale do Nilo (Kemet, a terra negra) e o deserto estéril (Deshret, a terra vermelha), ou entre a constante e benéfica inundação (Osíris), e a imprevisível e geralmente indesejável tempestade (Seth). 

Cosmogonia hermopolitana

Outra cosmogonia muito conhecida e difundida é de Hermópolis (Hmnw), apesar de possuir elementos similares, essa baseia-se em uma ogdóade (grupo de oito divindades). Esse grupo era dividido em quatro contrapartes masculinas e femininas. Roselie David (2011, p. 127) comenta que esse mito não ficou restrito a um deus supremo, tendo em sua originalidade oito deidades que eram: Nun e Naunet (águas primevas), Huh e Hauhet (eternidade), Kuk e Kaubet (escuridão) e Amon e Amaunet, também associados com os nomes de Qerh e Qerhet (ar). Seguindo por uma perspectiva mais abstrata, Renata Tatomir (2017, p. 15) explica que talvez essa dicotomia entre masculino e feminino esteja relacionada com as metades da experiência humana, e quatro para cobrir os pontos cardiais. O primeiro par relacionado as águas, está conectado a falta de algo sólido. O segundo ao tempo sem fim (infinito). E os dois últimos pares ligados à falta de luz e direção.

Na parte da representação, esses deuses possuíam cabeças de serpentes (femininos) e anfíbios (masculinos), sendo que pós a criação, essas divindades reinaram no mundo dos vivos até a morte, onde continuaram a ter sua influência. Devemos lembrar que para a sociedade do Antigo Egito, o mundo dos mortos não era um lugar melancólico, mas sim uma extensão da vida onde os deuses continuavam a ter sua influência.

 

Figura 3 – Ogdóade em seus respectivos pares

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ogdoad_(Egyptian) 

Existe uma outra versão bastante conhecida do mito hermopolitano, essa que expressa nitidamente a figura do deus Thoth. Segundo essa versão por Roselie David (2011, p. 127) a vida emergira de um ovo cósmico que fora lançado na ilha da criação por uma gansa, ou por um íbis. Em outro relato, a ogdóade criou uma lótus no lago sagrado em Hermópolis, que abriu suas pétalas para revelar Rá (sob a forma  de uma criança, ou escaravelho que se transformou em um menino), dando segmento à criação do mundo e da humanidade (DAVID, 2011, p. 127). Já para Leonard Lesko (2002, p. 116) dessas oito divindades surgiu um ovo contendo o deus responsável pela criação de todos os outros, incluindo humanos, animais, plantas, sendo que Thoth pode ter sido esse deus criador.

Aparentemente nos textos referentes a essa cosmogonia, Atum era facilmente colocado em seu lugar. O encantamento número 76 dos Textos do Ataúde é incomum, por considerar Shu como o criador da ogdóade, de forma que tem Atum prioridade no tempo tanto quanto no ato da criação. O encantamento contemporâneo 335 (versão anterior do capítulo 17 do Livro dos Mortos) mostra de maneira mais clara a propriedade do Nun, que é visto na maior parte dos textos posteriores (LESKO, 2002, p, 117).


Figura 4- Parte da representação da ogdóade no relevo do templo de Hathor em Dendera

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Ogdoad_(Egyptian)


Thoth é geralmente apresentado como deus da sabedoria e da escrita, em suas representações o encontramos na forma de um babuíno ou de um íbis. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p 288) explicam que em sua forma de babuíno, Thoth era bastante associado com o deus Hedj- wer (O grande branco) do começo do período dinástico (3100- 2686 a.C.). No final do Antigo Reinado (2686-2181 a.C.), ele começou a ser retratado com cabeça de íbis e corpo humanoide, geralmente segurando uma paleta de escriba.

Siegfried Morenz (1973, p.175) salienta que vale ressaltar três pontos nessa cosmogonia, destacando como esse arquétipo cosmogônico assemelha-se de certa forma com a ciência física moderna. A primeira característica é o problema relacionado com a matéria cósmica, não com a vida orgânica; a segunda é que esse elemento está ligado a figuras míticas; e por último, é que a pressão colocada nas qualidades físicas da substância primordial, atesta para a existência de um espirito cientifico. Certamente isso sublinha a contínua ligação entre ciência e religião no Egito, sem limite rígido e rápido, foi desenhada entre o elemento primevo e o criador, ou o que ele criou. No ponto onde a existência se tornou evolução, o fenômeno do caos adquiriu um aspecto duplo: aparecendo simultaneamente como substância, energia instalando uma massa inerte em movimento (MORENZ, 1973, p. 176).

Mesmo que o conceito cientifico não se aplique para uma sociedade tão antiga como o Egito, é notável o esforço para a elaboração de tal mito. Mostrando o grau de sofisticação que aderiu diversos pensamentos de altíssima complexibilidade em busca de uma compreensão para o mundo que eles imaginavam existir.

O mito menfita

A cosmogonia menfita difere um pouco das citadas acima, pelo fato de ser muito mais abstrata que as demais. Enquanto as outras tentavam explicar a origem do mundo de uma forma teogônica, com uma geração de deuses seguidos por outros, ou até de uma maneira pseudocientífica, na qual podemos encontrar modelos similares aos físicos, o mito de Mênfis é mais estático, dando ênfase no poder das ideias e das palavras. Para melhor entendermos esse modelo, devemos pautar a figura do deus Ptah, que de certa forma nunca foi uma divindade de destaque dinástico.

Ptah é geralmente representado mumificado e com a cabeça raspada, trajando na mesma uma espécie de ornamenta. Suas mãos estão soltas das ataduras segurando um cetro, que em sua ponta sustenta três símbolos superpostos: Na parte de baixo o pilar djed, que significa estabilidade; na parte central a cruz ankh que é a vida; na parte superior temos o cetro was, símbolo de poder.  Ptah está em cima de uma plataforma que pode muito bem presentar a colina primordial (benben).

Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p. 230) analisam que do Médio Reino (2055-1650 a.C.) em diante, o deus menfita começou a aparecer usando uma barba reta, sendo que a sua base iconográfica continuou imutável ao longo do período faraônico. É comum ele ser relacionado no período helenístico com o deus Hefesto, por ambos estarem ligados com a metalurgia. O próprio Ptah fazia parte de uma tríade em Mênfis, ao lado de sua consorte (a deusa leoa Sekhmet) e o deus lótus Nefertem, na qual a relação dos dois é incerta. Imhotep, o deificado arquiteto da pirâmide de degraus, chegou a ser considerado como filho de Ptah, embora esse não fizesse parte da tríade.

O sumo sacerdote do deus artesão de Mênfis tinha o título de (supremo líder dos artífices). A conexão com a produção de artefatos certamente contribuiu para a elevação do seu culto a um patamar de deidade da criação universal. Pensava-se que ele trouxera a existência ao mundo pelos pensamentos emanados de seu coração, e as palavras de sua língua (SHAW, NICHOLSON, 2002, p. 230). O verbo divino era pensado pelo coração de Ptah, e assim materializado em suas palavras. Para os antigos egípcios era função do coração o ato do pensamento.

Roselie David (2011, p. 124) argumenta que a palavra falada possui dois princípios divinos: da percepção e da criatividade. Essas são forças naturais na qual a criação pode ser atingida, sendo que o deus criador percebe o mundo como um conceito e depois cria por intermédio da sua primeira expressão verbal. Para tal feito é utilizado a magia, uma força que se creditava a transformação de um comando falado em realidade. É notável que a cosmogonia menfita diverge de seus fundamentos criacionistas das anteriores, focando na importância da fala, que na sociedade egípcia significava muito mais do que um mero gesto de expressão, mas sim uma convicção que transmitia poder afetando a vida e o cotidiano das pessoas.

Como vimos, o deus Ptah cria com uma característica bem distinta, pelo uso do verbo divino. A passagem da pedra de Shabaka que descreve a criação, assemelha-se muito com o primeiro capítulo do livro de Gênesis, onde o deus bíblico também cria através da palavra. Para Richard H Wilkinson (2003, p. 18) a característica da fala alude ao planejamento consciente da criação e sua execução através do pensamento racional do discurso, nisso foi atribuído a Ptah pelos sacerdotes de Mênfis o primeiro exemplo do que podemos chamar de “logos”, doutrina na qual o mundo é criado através da fala de um deus. Ela também assimila as condições existentes na enéade, colando Ptah como um demiurgo, ou até uma ideia que precedia a Atum. Renata Tatomir (2011, p. 31) aponta que o menfita surgiu antes do grupo das nove deidades, sendo que ele pode ser identificado como o primeiro montículo de terra seca que emergiu das águas abismais, na qual Atum se ergueu. Sendo que o monte benben, e portanto Ptah, tiveram um papel essencial na construção do próprio ser de Atum.


Figura 5 – Pedra de Shabaka exposta no Museu Britânico

Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA498

 

Ptah também era visto mesclando elementos masculinos e femininos dentro de si. Isso pode ser observado nos primeiros textos do período final da história egípcia, no qual o nome desse deus era escrito acrofonicamente como pet-ta-heh ou p(et) + t(a) + h(eh), como se ele segurasse o céu (pet) sobre a Terra (tá), mas também combinando o elemento feminino do céu e o masculino da terra de uma forma andrógena da dualidade primordial masculina-feminina Ptah-Naunet (WILKINSON, 2003, p. 18).  

A criação em Esna e Khonsu

Outras duas cosmogonias menos conhecidas são as de Esna e de a Khonsu, que embora não tão difundidas, merecem mais que uma mera menção. O primeiro mito pode ser encontrado nas paredes do templo de Khnum em Esna e data do período romano. Renata Tatomir (2017, p. 34) explica que Neith é o primeiro ser a emergir do Nun, transformando-se em uma vaca e então em um peixe. Essas são as imagens que derivam de seu culto, sendo adorada nessas duas formas. Alexandra Von Lieven (2014, p. 20) apresenta Neith como uma divindade andrógena, também sendo conhecida como “o pai dos pais”, “a mãe das mães”, “o deus que se tornou dois deuses”. Também é atribuída a essa deidade a criação de Rá.

Porém essa cosmogonia é muito controversa, pois existe um outro deus criador nesse mito que pode muito bem confundir o leitor. Françoise Dunand e Christiane Zivie-Coche (2004, p. 45) apontam que os teólogos têm de enfrentar o delicado problema das divindades de Esna estarem ligadas com a criação; Khnum, o oleiro, e Neith, a venerável deusa do delta. Khnum tinha como centro de culto a cidade de Elefantina, e era representado com uma cabeça de carneiro. Ian Shaw e Paul Nicholson (2002, p. 151) comentam que esse deus já era adorado desde os primeiros períodos dinásticos por volta de 3100-2686 a.C. como parte de uma tríade com as deusas Satet e Akunet.

Em sua forma primitiva, essa deidade aparece estar ligada a criação, até pela simbolismo e combinação criativa de moldar a cerâmica com a fertilidade do carneiro, e também pelo fato da palavra egípcia para esse animal ser Ba, que tinha o significado de “essência espiritual” (embora essa fosse escrita com o hieróglifo de uma cegonha). Talvez parcialmente, porque existisse essa conexão com o conceito Ba, que Khnum era relacionado com o deus solar Rá, que algumas vezes aparece ilustrado com uma cabeça de carneiro, quando atravessava o mundo inferior com sua barca (SHAW, NICHOLSON, 2002, p. 151).

Como já assinalamos, Khnum também pode ser visto como uma divindade criadora, e em sua função como oleiro, o mesmo cria a vida através do barro na sua roda, na qual podemos observar um outro paralelo com o livro de Gênesis, onde Deus cria o homem com certas similaridades. Essa é uma das poucas passagens cosmogônicas na qual vemos a criação da humanidade, aparentemente os egípcios não estavam interessados em colocar a vida humana como uma criação independente. Françoise Dunand e Christiane Zivie-Coche (2004, p. 56) destacam que por um bom tempo esse deus oleiro foi visto nas representações modelando a imagem de algo que seria a “criança real” concebida por Amon, junto com o Ka em sua roda de oleiro. Porém em textos mais tardios, especialmente os relacionados à Esna, vemos sua atividade criativa estendida para dar vida aos deuses e a humanidade.

O que podemos chamar de cosmogonia de Khonsu, aparentemente é uma tentativa tebana de explicar a criação. Leonard Lesko (2002, p. 128) comenta que esse mito é encontrado em um texto ptolomaico que tenta elucidar a ligação de Tebas com a ogdóade hermopolitana e Ptah, por meio de descrições novas e imaginativas e com um bom senso de humor. Para Eugene Cruz-Uribe (1994, p. 188-189) as cenas do templo de Khonsu servem como síntese de uma linha mítica que foi desenvolvida no Novo Reino, e continuou sendo formulada no Terceiro Período Intermediário e na época Saíta. Assim, a importância do deus Amon-Rá mingou principalmente devido a natureza política da ascensão do seu culto.

Por falta de uma origem teológica, uma alternativa foi criada para enfatizar a combinação dos mitos de Amon e Osíris. Assim o filho Khonsu é apresentado como o criador, que segue como um vigoroso jovem líder, como também uma esperança para o futuro. Ele é relacionado com o papel que herdou de Osíris (morte e renascimento), assim também fazendo a função de Amon-Rá nos festivais do monte Djeme, horando os ancestrais e assim sendo rejuvenescido.

Esse ato está muito próximo do círculo de criação, morte e recriação. Khonsu, o luar, faz um paralelo com ele mesmo falcão, o sol e a lua, aspectos do dia e da noite, promovendo todas as formas da natureza. No final, a Maat é preservada, e temos a figura do rei apresentando-a de volta para os deuses (CRUZ-URIBE, 1994, p. 189). No entanto para Leonard Lesko (2002, p. 130) Amon-Rá continua sendo descrito como o pai dos pais nessa ogdóade, o que deveria ser contraditório, uma vez que tanto Khonsu como Ptah são considerados emanações de Amon, esse deus pode viajar (hns) para Hermópolis para produzir o ovo da qual nascerá essas oito divindades e também abrir (pth) Hathor para criá-los.

A cosmogonia de Khonsu, na verdade, retrata a ligação desses oito com Tebas como dupla, já que Amon-Rá veio de lá para gerá-los em Hermópolis, sendo que a ogdóade, em algum momento, supostamente voltou para o sul para ser sepultada em Djeme, na necrópole tebana (LESKO, 2002, p. 130). Por fim, Eugene Cruz-Uribe (1994, p. 189) relata que essas foram transformações da leitura que esse mito sofreu ao longo de dez séculos de interpretação e reinterpretação, fora a síntese de várias outras tradições. 

O intento do artigo foi de angariar informações e debates sobre o complexo pensamento religioso egípcio, para que com isso possamos desvincular aqueles termos padronizados das deidades. A religião no Antigo Egito tem que quer vista por via de regra nessa perspectiva confusa e sincrética, pois assim ela era pensada nessa sociedade. Todas essas confusões e mudanças no seu corpo cosmogônico, mostram que mesmo as Duas Terras não sofrendo tantas mudanças políticas e culturais como no caso da Mesopotâmia, a capacidade de reconstruir seu imaginário criacionista era altamente sofisticada. Dessa maneira, os egípcios entendiam o seu mundo com os deuses possuindo várias formas, e coexistindo com diversas características. Assim Como Khepri, Rá e Atum representavam o sol no limiar do dia; amanhecer, meio-dia e entardecer respectivamente.

 

Referências

Leonardo Candido Batista Mestre em História Social pela UEL

ČERNỲ, Jaroslav. Ancient Egyptian Religion. London: The Mayflower Press, 1953.

CRUZ-URIBE, Eugene. The Khonsu Cosmogony. Journal of American Research Center in Egypt. Vol. 31. p. 169-189, 1994.

DUNAND, Françoise; ZIVIE-COCHE, Christiane. Gods and Men in Egypt 3000 BCE to 395 CE. Ithaca: Cornell University Press, 2004.

FRANKFORT, HENRI. Egyptian Religion: An Interpretation. Mineola Dover Publications, INC, 2012.

LESKO, H, Leonard. Cosmogonias e Cosmologias do Egito Antigo. In SHAFER (org). As Religiões no Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

MORENZ, SIEGFRIED. Egyptian Religion. Ithaca: Cornell University Press, 1973.

ROSELIE, DAVID. Religião e Magia no Antigo Egito. São Paulo: Difel, 2011.

SHAWN, Ian; NICHOLSON T. Paul. The British Museum Dictionary of Ancient Egypt. Cairo: The American University in Cairo Press.

TATOMIR, Renata. Ancient Egyptian Cosmogonic Myths. Analele Universitatii Hyperion – Istorie. p. 7-36, 2017.

TRAUNECKER, CLAUDE. OS Deuses do Egito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

VON LIEVEN, Alexandra. Father of the Fathers, Mother of the Mothers. God as Father (and Mother) in Ancient Egypt, IN: ALBRECHT ; FELDMEIER (orgs). The Divine Father: Religious and Phylosophical Conceptions of Divine Parenthood in Antiquity. Leiden: Brill, 2014.

WILKINSON H, Richard. The Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt. London: Thames & Hudson, 2003.

 

11 comentários:

  1. Leonardo, parabéns pelo seu texto.
    Você cita num dos parágrafos iniciais que muitas fontes subsidiam o trabalho em relação à civilização egípcia em questão, inclusive abrindo espaço para especulações fantasiosas e isso acaba alimentando a curiosidade sobre esse povo. É sabido que muitos rituais religiosos eram realizados pelos sacerdotes e restritos à população que participava somente de alguns; entretanto o povo também exercia sua religiosidade no cotidiano através de práticas mais simples como você indica seja altares, bancadas e utensílios de culto. Essa prática doméstica era orientada pelos sacerdotes que ditavam quais ritos precisavam ser seguidos (até como forma de reprodução do que acontecia nos grandes templos), ou será que as pessoas comuns simplesmente faziam determinados atos que achavam compatíveis com determinada celebração/divindade?
    Obrigado, Junior Pleis.

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    1. Fico feliz que tenha gostado do texto, Junior! Sua pergunta é bem interessante, e para tentar entendermos, acaba sendo necessário ponderarmos sobre o que era “religião” para os antigos egípcios, já que essa era uma gama dispersa de crenças e práticas na qual precisamos muitas vezes buscar subdivisões para estudá-la adequadamente.

      Uma coisa importante para ser ressaltada, Junior, é que no Antigo Egito a ligação entre as esferas sociais e religiosas eram mais intimas do que nas atuais religiões, talvez porque a sociedade egípcia tenha sofrido poucas mudanças estruturais ao longo de sua história. Grande parte do nosso conhecimento está relacionado a uma pequena elite, sendo que as fontes diretas da maioria dos indivíduos são bem escassas.

      As crenças dessa camada dominante existiam em relação a uma sociedade mais ampla, porém essa parte da população era ignorada. Então não podemos dizer que a religião no Egito era de total consenso, pois as fontes representam a visão de mundo dessa elite. Isso complica o entendimento da religiosidade em seu cotidiano popular, sendo que podemos ter apenas uma vaga ideia devido ao que restou da cultura material.

      O egiptólogo John Baines comenta que a imagética dos grandes monumentos que essa sociedade produziu, é tão persuasiva, que os especialistas se abstêm de comentar sobre a omissão da maioria da população. Embora isso não signifique que a sociedade considerasse a ideologia da elite tão convincente, podendo estar ciente de sua ausência.

      Esses altares e outras ferramentas cultuais, podem muito bem representar a apropriação, sendo que essa é feita pelo uso das interpretações, que estão ligadas às determinações fundamentais de cada grupo. Os egípcios podem muito bem ter se apropriado dos ritos realizados pelo rei (posteriormente faraó), ou sacerdotes, adaptando-os para a realidade do dia a dia.

      Atenciosamente.

      Ms. Leonardo Candido Batista

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  2. Olá,

    Parabéns, Leonardo Candido, pelo excelente estudo
    Gostaria de saber se essas cosmogonias e suas representações teriam influenciado, em alguma medida, outras sociedades mediterrâneas. As formas iconográficas da civilização minoica, por exemplo, em muitos aspectos parecem bastante com as egípcias.

    Atte.

    Dalgomir Fragoso Siqueira (UPE)

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    1. Sou grato pela leitura do texto, Dalgomir! E essas influências mesopotâmicas e egípcias podem ser encontradas em sociedades posteriores no Mediterrâneo, no entanto precisamos deixar alguns pontos bem claros. Na iconografia, as pinturas em afresco podem ter sido sim emprestadas do Egito (os minoicos usavam afresco de verdade), mas os efeitos artísticos e os conteúdos expostos são diferentes, ficando claro que esse povo desenvolveu um estilo com características próprias, sendo isso parte integral de sua própria cultura.

      Apesar de existir registros anteriores de uma sociedade bem desenvolvida em Creta, é somente por volta de 1500 a.C. e 1000 a.C. que encontramos em definitivo no Mediterrâneo oriental um sistema de Estados e culturas que eram interligados por fatores econômicos e políticos, sendo que essas evidências são encontradas com relativa abundância por essa rede que abrangia mais ou menos 1200 quilômetros de leste a sul. E os dados arqueológicos compravam a existência de trocas comerciais entre o Egito e Creta.

      Essas influências mostram que mesma na Antiguidade, uma cultura pode muito bem ser transposta para outras localidades, sendo que tanto o Oriente Próximo, como o Antigo Egito, não podem ser vistos como entidades separadas. As fronteiras eram muito mais flexíveis e fluidas. Assim aspectos culturais e étnicos poderiam muito bem se comportar em diferentes regiões, mesmo distantes de onde foram em determinado momento estabelecidos.

      No conceito religioso, a maior influência que podemos detectar do Oriente Próximo nas sociedades gregas que vieram a se desenvolver posteriormente é o Canção de Kumarbi. Em suma, esse mito conta a trama de uma tentativa de despor Teshub (divindade celestial). O importante aqui é entender que esses eram mitos hurritas, e tiveram muita importância na mitologia grega.

      Podemos observar paralelos em Kumarbi e na Teogonia de Hesíodo, onde encontramos a castração de divindades, tentativa de engolir os próprios filhos, sucessões e lutas pela supremacia e etc. A canção de Kumarbi é um exemplo de como uma característica narrativa mesopotâmica persistiu nos mitos gregos, sendo que ela foi apropriada e reelaborada por outras culturas do Oriente Próximo, até ser transmitida em algum momento desconhecido para a Hélade.

      Uma semelhança que podemos notar em relação a algumas cosmogonias egípcias (heliopolitana e hermopolitana) e Hesíodo, é o Caos. E as duas entidades que habitavam dentro do mesmo (o vazio, e o não vazio), todavia isso é mais do que uma mera inanidade. Seria uma característica primordial do universo, uma realidade turva, fonte do escuro e negativo. Caos é um substantivo neutro em grego, porém tratado como algo feminino quando apresentado como divindade. Como uma espécie de demiurgo, ela gera outras deidades (Gaia, Tártaro e Eros).

      E nos mitos cosmogônicos, principalmente o de Heliópolis, vimos como as águas primevas muito se assemelham ao Caos, não pelo caráter de desastre e confusão (O Caos grego não tinha esse significado), mas sim pelo vazio e inexistência, onde surge uma ordem cósmica e criacionista. E em sua função como deidade, muito lembra Atum ejaculando uma parte da enéade.

      Atenciosamente

      Ms. Leonardo Candido Batista.

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    2. Fascinante!
      Eu tenho muito interesse em mitologia, principalmente a grega, mas desconhecia essa influência hurrita na mitologia helênica. Leonardo, você poderia me indicar materiais acerca da canção de Kumarbi, ou sobre essas influências ancestrais da mitologia dos gregos?
      Ficarei muito grato!

      Atte.
      Dalgomir Fragoso Siqueira (UPE)

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    3. Dalgomir, você pode dar uma lida na minha dissertação de mestrado (se assim te interessar), porque eu chego a comentar essas influências. Vou deixar o link abaixo caso se interesse.

      http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000219847

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  4. Olá, Leonardo Candido. Parabéns por um texto denso e ao mesmo tempo abrangente sobre as crenças egípcias.

    No seu texto, a fala do egiptólogo Černý é pertinente para atentar sobre a incoerência do (que ainda persiste em alguns espaços) pensamento acerca da estanqueidade da sociedade egípcia ao longo de sua existência pré-dinástica e faraônica, levando em conta o destaque que dão para a suposta ruptura do período amarniano e um sincretismo mais notável no período greco-romano.

    Me preocupa em como trabalhar as diversas multiplicidades (e aqui me deterei no espaço de sala de aula em conjunto com os livros didáticos, pois sou estudante de história mas ainda sem vivência docente) de explicações egípcias visto que em nossa sociedade se tende a separar questões religiosas das político-administrativas?

    Obrigada, Viviane Roza de Lima.

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    1. Obrigado pela leitura, Viviane! Lembrando que não existia uma separação estrita entre vida religiosa, social e particular para os egípcios. Praticamente eles respiravam esses conceitos como uma parte normativa da vida, observamos isso na arte e iconografia, onde mesmo após a morte continuavam a realizar tarefas do cotidiano.

      Então, sempre me fazem essa pergunta de como trabalhar o Antigo Egito em sala de aula, e não é uma tarefa simples! Como professor da rede, eu observo uma dificuldade latente dos alunos em compreender a Antiguidade, muitas vezes confundido as periodizações e pensando essa temporalidade de forma homogênea (sumérios, babilônicos, egípcios, gregos, romanos), como se eles coabitassem os mesmos lugares no tempo.

      Acho que não é segredo que os livros didáticos sobre o assunto são insuficientes, pois estão baseados em perspectivas antiquadas e sem problematizações sobre o Antigo Egito e Oriente Próximo, o que dificulta uma abordagem mais conceitual em sala de aula, pois é um período muito distante e alheio a nossa cultura e sociedade. Os materiais usados para elaboração dos livros, e mesmo as bibliografias que são pautadas, não contemplam a evolução das discussões que essa área da História Antiga sofreu ao longo de mais de trinta anos, ou seja, o que é ensinado nas escolas está muito defasado!

      Eu acredito que é necessário elaborar e repensar uma nova abordagem para o ensino de Antiga, angariando debates que hoje se demonstram essenciais nas historiografias sobre o assunto, como por exemplo, aspectos culturais, identidades e questões étnicas, de tal maneira que os professores tenham ferramentas que possibilitem ir além do conteúdo limitado e obsoleto do PNDL. Agora, a elaboração de um material abrangendo o que foi mencionado, além de ser uma tarefa complexa, demandaria muito tempo até ser absorvido pelas diretrizes e aparecer na legislação pronto para serem redigidos nos livros.

      O que eu tenho feito em sala de aula é tentar transpor em uma linguagem simples esses contextos e leituras feitas ao longo dos anos de pesquisa nessa área (desde que eu era aluno de iniciação científica). O lado positivo é que os alunos ficam bem receptivos, pois praticamente estão assistindo uma aula nova, já que as informações estão além do que podem encontrar nos livros e até no Wikipédia, porque são literaturas e artigos novos que problematizam questões nas quais eles possam a vir demonstrar interesse. O lado negativo é que isso ainda causa confusão, pois não é algo fácil de se tornar didático, então terão momentos que você acaba indo para o acadêmico dentro de uma sala de aula em uma escola estadual, que a princípio pode soar até elegante, mas sabemos que a abstração do conteúdo será insuficiente ou até nula.

      A sua pergunta sobre a parte religiosa se aplica no descrito acima, tentamos abordar de acordo com a realidade do aluno, e na maioria das vezes complementando o que está no livro didático. Demonstrando a disparidade religiosa egípcia, e as diversas interpretações de seus ritos, mitos e concepções. Todavia, eu sei que isso não é suficiente, e a necessidade de uma nova abordagem, com um novo material feito somente para o ensino básico é de extrema urgência, porém acredito que mesmo sendo feito, sua absorção para a educação será paulatina.

      Nisso também entraria a questão de fazer uma reciclagem em uma boa parte dos professores, já que o ensino em História Antiga nas universidades é muito focado em Antiguidade Clássica, sendo pouco abordado Oriente Próximo, Egito, China e etc (apesar de estar mudando, ainda que a maior parte das referências estejam em língua estrangeira). Algumas universidades do Paraná tinham um projeto de trazer esses professores novamente para o âmbito acadêmico, mas aparentemente já está sucateado.

      Atenciosamente

      Ms. Leonardo Candido Batista

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    2. São realmente muitos pontos sensíveis que demandam maior engajamento e um caminhar progressivo. Lamentável o possível sucateamento de um projeto que seria um auxílio e tanto no campo da História Antiga, cujo foco muitas vezes se restringe ao invés de ampliar.
      Novamente, parabéns pelo texto elaborado e agradeço sua explanação à minha dúvida.

      Viviane Roza de Lima

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