Giovanna Ily Farias Ramalho

 

A QUESTÃO DA TRADIÇÃO HISTÓRICA: BREVE ANÁLISE DO MUQADDIMAH (1377) DE IBN KHALDUN (1332-1406)

Ibn Khaldun foi um polímata muçulmano nascido na região da atual Túnisia, no ano de 1332 E.C/ 732 D.H. Apesar de afastado do ocidente intelectual hegemônico a relevância de sua obra foi debatida durante os séculos posteriores por ser apresentado nas universidades como arauto de pensadores totêmicos como Maquiavel, Hobbes, Montesquieu, Vico, Marx, Weber e Durkheim, uma consciência ou impulso inconsciente de ocidentalizar o seu pensamento, na interpretação do orientalista inglês Robert Irwin [Irwin,2018].

O livro de maior relevância na obra do magrebino medieval foi intitulado Muqaddimah, a priori, escritos com a intenção de servir como prolegômenos a sua obra, dividido em três tomos na versão em português. De modo geral, pode-se caracterizar o Muqaddimah como uma obra dedicada aos estudos da organização social árabe e seus resultados; estudo da história dos árabes, das suas raças e dinastias; e estudo da história berbere e de seus parentes Zanatas. Além de chamar atenção pelos capítulos divididos a exposição de fatos uns e a considerações gerais, outros, sem deixar de lado as artes e os conhecimentos dos povos árabes e berberes da região magrebina.

Na versão ocidental, o Muqaddimah, é chamado de Prolegômenos, palavras de origens diferentes, mas que possuem sentidos semelhantes -por razões de apreço prefiro referir-me a obra como Muqaddimah. Sobretudo, apesar deste livro chamar atenção por contar a História Universal do mundo árabe-magrebino, o intelectual e político magrebino dedica algumas páginas desse livro a debater métodos de escrita da história no mundo em que vivia, a qual possuía muitas críticas, apresentando-se, despropositadamente, enquanto intelectual crítico, conselheiro político e historiador. Seguindo, desta maneira, os mesmos passos trilhados por seus antepassados e que lhe deram determinadas vantagens entre as elites políticas e intelectuais árabes-magrebinas e andaluzas.

Nesta publicação, tenho por objetivo principal explorar o conceito Khalduniano de tradição histórica levando em consideração que este era o caminho apontado pelo autor para escrever uma obra histórica que atendesse os requisitos necessários para que esta fosse, então, ciência e que acima de tudo trouxesse ao leitor, quem quer que fosse, confiança e o mais próximo possível da verdade. Para tal, dedicar-me-ei à análise dos prolegômenos da Muqaddimah, tendo como base o prefácio e a introdução à obra escritos pelo próprio Ibn Khaldun e traduzidos para português por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, contando com algumas referências à autobiografia do autor anexada ao fim do primeiro tomo.

 

Ibn Khaldun e o Muqaddimah

A família de ‘Abd Al-Rahman ibn Khaldun partira do sul da Arábia para a região de Sevilha depois da conquista da segunda pela primeira. Em meados do século VII da Hégira (Século XIII da Era Comum) com a tomada de Sevilha pelas tropas de Fernando III, filho de Afonso IX soberano dos reinos de Leão e Castela, transportaram-se para a região de Ifríquia. Uma mudança comum entre famílias árabes de tradição no serviço público do local. O bisavô de Ibn Khaldun desempenhara alguns papeis políticos na Corte de Túnis, mas caíra em desgraça e fora assassinado. O avô seguira os mesmos passos, já o pai de Khaldun abandonara a política e o serviço público para dedicar-se a vida de erudito. O intelectual islâmico celebra a educação que recebeu durante a sua infância e juventude, a qual, indubitavelmente ajudara-o a conquistar os cargos de confiança que tivera nos países onde passou, como por exemplo, os cargos de Katib Al-sirr, encarregado dos Mazalim, Hajib, chefe Qadi, Quadi chefe Miliki, chefe Khanga e Professor. Com isso, durante sua vida Ibn Khaldun viveu além da região de Ifríquia onde nasceu, na região de Andaluzia, Marrocos, Argélia e Egito, sendo cobiçado entre os governantes para atuar, principalmente, no diálogo entre povos árabes nômades e autoridades locais.

O primeiro rascunho do Muqaddimah ficou pronto em novembro de 1377 E.C, quando Ibn Khaldun estava exilado em Qal'at Banu Salama, atual Argélia, por cair em desgraça com as tribos Riyah na região do atual Marrocos. Em 1378 E.C, após retornar à Ifriquía e reconciliar-se com Hasif Abu al-Abbas a primeira versão do Muqaddimah é dedicada ao governante. Segundo khaldun muitas das questões políticas a qual ele se dedicou no Muqaddimah eram enfrentadas em Ifríquia.

É importante, sobretudo, salientar que o Muqaddimah foi pensado por Ibn Khaldun como introdução ou primeiro livro da obra Kitab al-'Ibar wa-Diwan al-Mubtada' wa-l-Khabar (O Livro de Advertência e Coleção de informações históricas e iniciais). Essa obra completa tem um total de sete livros. Nesta concepção, o livro apresentá-lo-ia enquanto político e intelectual, além de contar a história universal árabe-magrebina, incluindo as sociedades desde antes da chegada do Islã nesta região, até as estratégias utilizadas pelos califados para se manter no poder, além de arte, cultura e religião. Mas Ibn Khaldun viu, ainda em vida, o Muqaddimah se tornar uma obra a parte.

 

A Tradição Histórica

Quando escreveu o Muqaddimah Ibn Khaldun construiu um debate sobre como se deve formular a narrativa histórica, estes escritos se encontram em uma parte inicial que deveria ser os prolegômenos do livro. Para isso, o autor formula uma crítica a tradição histórica que vinha sendo seguida entre seus coevos levando em consideração dois eixos dialéticos: a excelência da ciência histórica e os erros cometidos por historiadores a miúdo.

Sobre isso Ibn Khaldun afirma:

“A história é uma ciência que se distingue pela nobreza de seu objetivo, pela sua grande utilidade e importância de seus resultados. É ela que nos faz reconhecer os hábitos, a maneira de viver dos povos antigos, as ações e atividades dos profetas e a administração dos reis. Também, os que procuram instruir-se em contato com os assuntos espirituais e temporais do passado encontram, na história, lições de conduta. Para chegar-se a tanto, deve-se usar de recursos da mais diversa natureza e conhecimento dos mais variados e gerais. Não é, senão através de uma aplicação profunda que podemos chegar à verdade e prevenir-nos contra os erros e equívocos.” [Khaldun, p.18]

Quando fala sobre os erros cometidos por historiadores ao escrever a história Khaldun aponta Ibn Rachik e a obra Mizan al-Amal, e comenta que escritores como ele “reproduzem com exatidão os contos que correm na boca do povo, seguindo nisto o exemplo de outros escritores que os precederam, deixando em completo olvido a questão das origens e das causas”.[Khaldun, p.10-11]

Levando em consideração que a história, para o autor, é um tesouro do conhecimento que se passa de geração em geração: “ouvida com avidez por aqueles que nela acham deleite e passatempo.” [Khaldun, p.3-4]. O autor declara que identificou nas leituras que fizera das obras de outros intelectuais árabes duas formas de apresentação da história: Externa e Interna.

Na Forma Externa, a história tem como característica o registro de acontecimentos que marcaram o curso dos séculos como, por exemplo, a sucessão de dinastias ou grandes fatos que testemunharam as gerações passadas. Outras características que devem ser esperadas ao se deparar com esta forma da história é o embelezamento das orações e curiosidades que são apresentadas como “bônus” aquela narrativa. Sobre isto, Khaldun afirma:

“(Ao descrever acontecimentos de tanto vulgo e magnitude), a pena dos historiadores se agiganta e o verbo dos mestres se enfeitam de figuras e provérbios. (Tão alta no conceito, tão aprazível na forma), a história é o encanto das assembleias literárias onde as multidões de seus amantes se acotovelam embevecidos. (Mestra incomparável), para tudo dizer, a história nos revela os segredos das revoluções e das transformações por que passam os seres em toda a Criação.”

Quanto à Forma Interna da história, a qual o autor vai se referir como ciência pela primeira vez, proclama: “exame e verificação dos fatos, investigação cuidadosa das causas que os precederam, o conhecimento profundo da maneira como os acontecimentos se sucederam, e como começaram.” [Khaldun, p.4] Para Ibn Khaldun, esse é o motivo pelo qual a história é considerada ciência e deveria ser tratada com a devida seriedade.

De posse desta informação, o autor elucida alguns intelectuais célebres que fizeram, em sua percepção, a verdadeira ciência histórica ancorada em boas tradições históricas e métodos de composições. Alguns desses se restringiram a trabalhar com a história local, outros se dedicaram à toda a história Universal. Entre esses autores célebres Ibn Khaldun destaca Ibn Ishac, Tabari, Ibn Al-Kalbi, Muhammad Ibn Omar Al-Uáqidi, Saif Ibn Omsr Al-çadi e Al-Maçudi. Apesar das críticas feitas por Khaldun a alguns desses intelectuais nos capítulos seguintes, para ele, essas críticas só são possíveis pelos métodos que seguem esses intelectuais nos livros sobre história que escreveram.

Observo, então, que maior crítica de Ibn Khaldun neste sentido é sobre a não utilização dos métodos de composição deixando de seguir as boas tradições históricas como observamos a seguir:

“Transmitindo-nos os fatos tais como lhe chegaram aos ouvidos, estes historiadores não se emprenharam sequer em indagar a possibilidade e a natureza dos fatos, aprofundando as causas ou levando em consideração as circunstancias que os rodearam. Já mais vimos narrativa, por mais fabulosa que pareça, merecer da parte deles contestação ou repulsa; tornou-se tão raro o talento de verificar, como fraco, em geral, o senso do discernimento, ao passo que o erro e o equívoco são, para o investigador, companheiros inseparáveis, como o espírito de rotina e de imitação é inato no homem e inerente a sua natureza!” [Khaldun, p.5]

Para Ibn Khaldun o mais importante ao se escrever a história são os questionamentos feitos pelo historiador sobre as causas dos fatos, não a grandeza do fato em si. É a partir do movimento contínuo de causa e consequência da história, que tem interferência da liberdade de escolha humana que a história terá legitimidade para instruir aqueles que a leem. O autor reconhece que tais questionamentos não são feitos por acaso e que para tal é necessária muita erudição - este provavelmente é um dos ensinamento da tradição árabe ensinado por seu pai.

Por isso, chamo atenção para o senso do discernimento, citado por Ibn Khaldun para exemplificar uma de suas críticas acerca das inverdades ou exageros já esperados por leitores das mais diversas áreas do conhecimento que se dedicam a fontes históricas que contém somas de dinheiro ou forças de um exército.

Sobre isto, Ibn Khaldun cita Maçudi e aduz que o árabe, assim como muitos outros, afirmam que o exército Israelita de Moisés contava com mais seiscentos mil guerreiros e que algumas questões-chave seriam necessárias para chegar a um número mais real de soldados. O magrebino salienta ainda, que segundo as mesmas fontes o exército Persa superava em muitos números o exército Israelita-: “As terras do Egito e Síria reunidas seriam bastante vasta para fornecerem um número tão elevado de homens em idade militar?”, “Essas terras teriam capacidade financeira de manter um número tão elevado de soldados?”, “O campo de batalha é suficientemente grande para comportar um número tão elevado de inimigos num combate corpo a corpo?” e por fim, “levando em consideração as multidões que já vi em minha vida, até onde minha vista alcançaria ver um campo de batalha com dois exércitos dessa magnitude?” [Khaldun, p.19-25]

Segundo Khaldun estes foram alguns dos motivos pelos quais ele dedicou-se a escrever o Muqaddimah no momento de solidão que passara durante o exílio em Qal'at Banu Salama pretendia, a partir desses escritos, discutir questões que pudessem ajudar a política Magrebina e despertar o senso crítico de outros intelectuais em potencial da época.

A proposta historiográfica do Muqaddimah reunia aquilo que era considerado mais importante para o autor:

“Encarei e discuti com grande cuidado as questões condizentes com a matéria deste livro de maneira a pôr meu trabalho ao alcance tanto dos eruditos como dos homens do mundo. Na sua confecção e na distribuição das matérias, adotei um plano original, elaborei um método novo de escrever a História, escolhendo um caminho que certamente surpreenderá o leitor, e seguindo uma marcha e um sistema inteiramente próprios. Ao tratar do que se relaciona com a formação da Sociedade Humana oferece como circunstancia características. Apontei as causas dos acontecimentos e mostrei por que caminhos os fundadores dos Impérios entraram.”

 

Considerações finais

Diante do que foi exposto compreendo que para Ibn Khaldun a tradição histórica diz respeito ao conjunto de métodos utilizados pelos historiadores para escreverem a história.

Alguns impõe aos seus escritos um limite geográfico ou temporal, outros tentam debater toda a história de que tem conhecimento, mas de qualquer forma o erro que deveria ser evitado pelos historiadores seria o de não questionar a história que lhe chega aos ouvidos no momento de registra-la.

Assim, levando em consideração que a tradição histórica Khalduniana manda colocar a história sob uma questão e a partir daí desenvolver um exame de verificação dos fatos com críticas inteligentes, seus escritos deixam um amplo leque de debates que ainda podem ser feitos levando em consideração, não só o Muqaddimah, mas todos os livros escritos pelo Ibn Khaldun e pelo historiadores em seus contextos e tempos únicos. Levando em consideração que este é o caminho que leva a história à sua cientificidade.

 

Referências:

Giovanna Ily Farias Ramalho é graduanda no curso de História da UFPE-Universidade Federal de Pernambuco e faz parte do LEOM-Laboratório de Estudo de Outros Medievos.

KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os Prolegômenos. tradução integral e direta da língua árabe para a portuguesa por J. Khoury e A. B. Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia,1958, (Tomo 1 Pág.1-84; 475-556)

IRWIN, Robert. Ibn Khaldun, an intellectual biography. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2018.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 1-274. Tradução: Marcos Santarrita.

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Civilização Brasileira,2012.

SENKO, Elaine Cristina. Aspectos sobre o poder e a civilidade na narrativa histórica da Muqaddimah de Ibn Khaldun (1332-1406) Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v.13, n.1, p.207-222,2013.

SALAMA, Mohammad R. Islam, Orientalism and Intellectual History: modernity and the politics of exclusion since ibn khaldun. New York: I.B. Tauris & Co Ltd, 2011.

4 comentários:

  1. Boa noite. Muito legal o seu trabalho, agora, existe alguma influência na Europa. Digo porque os pensadores orientais são raros no ocidente. Grato, Marlon Barcelos Ferreira

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    1. Prezado, boa tarde, agradeço a pergunta. Quando viveu Ibn Khaldun foi influente principalmente na região do Magrebe e Al-Andaluz, quando teve cargos políticos e escreveu a Muqaddimah. Academicamente ele foi mais relevante no Egito quando foi professor. Contemporaneamente ele começou a ser mais lido e citado a partir do século XX, fomentado com o crescimento dos estudos subalternos, mas ainda assim é bastante marginalizado e reduzido a estante do conhecimento oriental ou norte africano. Entre os arabistas encontra-se a maior parte dos trabalhos que tratam de Ibn Khaldun, porém os africanistas o consideram muito importante pro registro da história da África, assim como para a construção do pensamento e intelectualidade africana medieval. Existe ainda alguns especialistas que utilizam da autobiografia de Ibn Khaldun para compreender suas percepções da sociedade Andaluz, mas apesar da ascendência e do período que passou lá, ele não era considerado Al-Andaluz. Espero ter tirado suas dúvidas. Grata, Giovanna Ily Farias Ramalho.

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  2. Olá Giovanna Ramalho!

    Ibn-Khaldun pensava também sobre um fazer histórico islâmico, que fosse ao mesmo tempo uma história muçulmana escrita por e para muçulmanos? Imaginamos que ele estivesse preocupado não apenas com a natureza da história, mas também ao seu serviço científico dentro das corte islâmicas?

    Excelente trabalho!

    Rafael Maynart

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    1. Prezado, boa noite, obrigada pelas perguntas.

      Ibn Khaldun acreditava que a história -em especial a história islâmica, a qual ele tinha muito apresso e via como majestosa- poderia ajudar os governantes a solucionar problemas e por isso ele prezava pelo uso de um método. A Muqaddimah, na realidade, é um livro de História Universal Árabe, a qual o autor põe ênfase na atuação árabe no Magrebe (região onde ele nasceu e serviu a corte a maior parte da vida), quando escreveu esse livro a intenção era de que essa história pudesse ajudar os governantes da região.
      A parte a qual me dedico do livro é um prolegômenos, que não necessariamente faz parte do conteúdo do livro. Ele escreveu essa introdução com a intenção de fazer provocações a outros intelectuais, e escolho escrever sobre ela porquê nessa parte ele explica a sua metodologia com palavras diretas, entretanto o livro Muqaddimah não se resume a isso. Já que o conteúdo da Muqaddimah propriamente dito é, na verdade, a História Universal Islâmica.
      Em suma, posso responder que sim, ele pensou na história escrita por e para muçulmanos, em especial os magrebinos e Andaluzes. E sim, ele estava preocupado com o uso da cientificidade da história dentro das cortes já que ele acreditava que a história poderia ensinar e, por isso, o prolegômenos com explicações do método e provocações as futuras produções.

      Agradeço, Giovanna Ily Farias Ramalho.

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