Felipe D. Ruzene

 

TEOCRASIA NO ANTIGO EGITO: OS SINCRETISMOS EM OSIR-HAP E SERÁPIS NA RELIGIÃO FARAÔNICA


Este artigo tem por finalidade apresentar algumas figuras sincréticas da religião faraônica, bem como elucidar sobre os aspectos da teocrasia, da fusão de caracteres divinos que resultaram na sua composição e etiologia de seus cultos. Deste modo, analisamos não apenas as novas deidades que surgem no panteão faraônico, mas também a inerente propriedade sincrética como faculdade presente na concepção da religião no Egito antigo.

 

Introdução

Mesmo na atualidade, as divindades da antiga religião faraônica provocam grandioso entusiasmo e levantam muita curiosidade. O panteão egípcio penetrou tão profundamente no imaginário ocidental que faz parte, até mesmo, de nossa cultura popular, integrando diversos segmentos midiáticos. Há muito tempo, historiadores, egiptólogos e arqueólogos, dedicam-se em datar e compreender o reinado dos faraós, buscando conhecer um pouco mais sobre a história e a cultura do antigo Egito. No que diz respeito à antiga religião faraônica, deparamo-nos com um extenso conjunto de deidades responsáveis pelos mais variados aspectos da vida humana e mesmo além dela, no pós-morte. Em meio a este vasto panteão, observamos o constante diálogo entre as liturgias e entre as próprias figuras dos deuses que predicamentavam estas crenças [Cf. BIELESCH, 2010]. Diversos autores apresentam a associação, ou mesmo uma fusão entre divindades egípcias, uma união de caracteres de dois ou mais deuses de modo a formular uma nova deidade, conjugando os elementos de ambos os sujeitos formadores. Assim, o Egito antigo se constituiu num espaço concitador e proveitoso para as fusões religiosas e encontros étnico-culturais [SALES, 2007, p. 309]. A partir do culto aos deuses originários, quase sempre já bem representados e difundidos no Egito, assegurou-se o sucesso dessas novas personalidades sincréticas que adentravam ao panteão faraônico. Os deuses eram fundidos por propósitos práticos, muitas vezes essa unidade se dava apenas para os devotos, ainda que essa identificação não se desse a nível conceitual [BIELESCH, 2010, p. 385]. Tal sincretismo entre divindades é denominada, segundo a enciclopédia Treccani, como Teocrasia: 

“Fusão de divindades, fenômeno frequente nas religiões politeístas: duas ou mais figuras divinas, originalmente distintas, por motivos diversos e baseadas em alguma afinidade de caráter ou posição, acabam sendo consideradas idênticas, de modo que a cada uma delas também é atribuído as características peculiares dos outros. A religião do antigo Egito fornece exemplos característicos de teocrasia: com o surgimento do culto de Osíris, esse deus absorve muitas outras divindades; o deus supremo de Memphis, Ptah, já fundido com o deus Sokar, com a hegemonia de Osíris no culto fúnebre torna-se Ptah-Sokar-Osíris, concebido como uma única figura” (tradução do autor) [TRECCANI, 2020].

A própria enciclopédia italiana, ao fazer menção ao termo “teocrasia”, utiliza como exemplo figuras da religião egípcia, deixando evidente que a orientação sincrética desta crença possibilitou a formação de novos deuses através de modelos já conhecidos, como no caso de Ptah-Sokar-Osíris, Osir-Hap e, posteriormente, durante a dinastia Ptolomaica, Serápis. Em vista disso, este artigo tem por finalidade apresentar dois casos destas divindades formadas a partir do diálogo cultural: o de Osir-Hap e Serápis, assim identificando a orientação sincrética presente na conceituação da religião faraônica.

 

O caso de Osir-Hap

O touro Ápis, Hap em egípcio, era uma deidade importantíssima na antiguidade, a representação da potência viril do próprio faraó e do “ba”, o poder divino, de Ptah, a principal deidade da antiga capital Mênfis [SOUSA, 2015, p. 137]. A vida deste animal era sacralizada em todos os aspectos, vivia dentro de um complexo em seu próprio templo, possuía um harém de vacas, recebia visitas e oferendas de peregrinos, só deixava o ambiente sacro quando ocorriam festivais e cerimônias ou no caso da coroação de um novo faraó, na qual era convidado de honra. Os autores apontam para o fato de que tais aparições podiam ocorrer, apenas, uma ou duas vezes durante toda a existência do animal [SALES, 2013, p. 70]. A importância do culto a Ápis, provavelmente fruto das culturas religiosas zoomórficas da Pré-História segundo alguns historiadores, se estendeu até o período romano e era, certamente, uma das mais célebres divindades de todo o Egito [ibidem, p. 63].

De acordo com Cláudio Eliano, em De Natura Animalium [ELIANO, XI, 10 apud SALES, 2013, p. 66], para que um touro fosse identificado como Ápis era necessário que os sacerdotes distinguissem vinte e nove sinais, extremamente específicos, em todo seu corpo. Após a morte do touro sagrado os sacerdotes raspavam suas cabeças, iniciavam um rigoroso jejum e então procuravam pelo touro optimus, a nova encarnação de Ápis [SOUSA, 2013, p. 137]. É neste momento, com a morte do touro Ápis, que encontramos sua teocrasia com Osíris. Após a morte do touro era decretado luto oficial de setenta dias, ao longo deste período o animal passava por um específico e cuidadoso processo de mumificação. Durante sua preparação funerária, Ápis se identificava com Osíris, o deus dos mortos, tornando-se assim outra divindade, Osir-Hap ou “o Ápis defunto”:

“Os antigos Egípcios acreditavam que a alma de Osíris penetrava no corpo do touro Ápis. nesta sua versão sincrética com Osíris, Osíris-Ápis, era o deus funerário e senhor de toda a necrópole menfita e esta vinculação exerceria enorme apelo sobre as populações. Para além das fronteiras do Serapeum de Sakara, Ápís adquiriu importância no contexto funerário integrando designadamente o repertório iconográfico de urnas funerárias e sepulturas privadas e de um templo no distante oásis de Kharga, no deserto líbico. A ligação a Osíris e ao mundo funerário justificou também o epíteto de Touro de Imenti (o mundo inferior) atribuído a Ápis” [SALES, 2013, p. 65].

Isto posto, percebemos a associação sincrética da figura de Osir-Hap. O culto menfita ao touro póstumo permaneceu mesmo após ao período ptolomaico e foi tema recorrente na iconografia egípcia. Esta teocrasia gera uma nova divindade com caracteres ctônicos, de deus do submundo e do pós-morte, como uma relação à figura de Osíris, ao mesmo tempo possui representação de deus fértil, deidade da terra e agricultura, em relação com a figura de Ápis. Assim, aspectos de ambos os deuses congregados geraram o culto ao touro defunto [SOUSA, 2013, p. 137]. Tal deidade ainda se beneficiava vastamente com a difusão da devoção ao deus dos mortos. A fama de Osíris se devia, em parte, ao fato de trazer consigo uma noção salvífica no plano pós-morte. Era por ele que os devotos podiam colher os frutos de uma vida ética, afinal, o deus Osíris poderia conceder a eternidade àqueles que passassem em seu tribunal [Cf. RIBEIRO, 2014]. Logo, a divindade permitia uma noção teológica de ascensão à imortalidade, certamente algo que chamava a atenção de fiéis por toda parte. Assim enchiam seus templos e deferiam diversas libações dedicadas a Osíris. Ainda, na necrópole menfita de Sakara, Osíris foi congregado a outras duas divindades dando origem a Ptah-Sokar-Osíris [SOUSA, 2015, p. 140]. Em sua dissertação, Simone Bielesch [2010, p. 385] apresenta que este sincretismo tipicamente egípcio pode ser compreendido a partir de uma ideia de habitação. Os deuses faraônicos possuíam o dom de habitar temporariamente outrem, quer seja uma estátua ou representação religiosa, ou mesmo uma outra divindade. Expõe ainda a possibilidade dessa habitação sem desfeita, retornando as divindades aos seus modelos independentes. Comumente um deus universal poderia habitar uma deidade local e assim estabelecer um sincretismo entre suas figuras e habilidades, gerando uma teocrasia singularmente egípcia. Tal é a ideia que apresentam alguns egiptólogos sobre Osir-Hap, uma assimilação que surge a partir da habitação de Osíris no corpo do touro Ápis [SALES, 2013, p. 64-65].

 

O caso de Serápis

Passando ao período ptolomaico observamos outra divindade sincrética amplamente expressiva ao Egito. O deus Serápis que, segundo Plutarco [2001, p. 28], seria um deus do Oriente, da região do Mar Negro, teria se revelado a Ptolomeu I Sóter num sonho. A partir daí, o soberano teria trazido a estátua deste deus da colônia grega de Sinope e feito dele o patrono de Alexandria. De acordo com Luís Lobianco [2006, p. 237] é na própria divindade de Osir-Hap que se assentam as origens de Serápis, assim defende que os soberanos Lágidas utilizaram a figura já sincrética e bem difundida para constituir uma nova divindade que congregasse elementos egípcios e helênicos. Justificativa a isso é o fato do templo dedicado ao deus Serápis ser o Serapeum de Sakara, mesmo santuário em que os touros Ápis embalsamados eram velados, desde o reinado do faraó Ramsés II (1279-1213 AEC) da XIX dinastia [SALES, 2013, p. 69]. Outrossim, Serápis não apenas utiliza a união de Ápis e Osíris, mas integra outros deuses do panteão grego, tais como Hades, Zeus, Asclépio e Dioniso. Torna-se, pois, uma divindade sincrética e culturalmente híbrida:

“A fundação do culto de Serápis assentava num diálogo intercultural responsável por um complexo jogo de identidades divinas. É um facto que o estatuto universal do deus manifestou-se, desde logo, na sua capacidade para estabelecer identificações sincréticas com outros deuses, quer estes fossem gregos, como era o caso de Hades, Zeus ou Dionísio, ou egípcios, como Osíris ou Ápis.” [SOUSA; SILVA, 2013, p. 10]

Deste modo, a teocrasia de Serápis apresenta duas particularidades em relação à anterior. Primeiro, este deus elenca em sua formação não apenas divindades da religião egípcia, mas também da helênica, de modo que era uma figura tanto autóctone quanto alóctone, variando de acordo com as fontes e autores [SOUSA, 2015, p. 133]. Segundo, apesar da possibilidade apresentada por Bielesch [2010, p. 385] da teocrasia se dar apenas aos devotos e não conceitualmente, no que diz respeito à formação de Serápis diversos autores apresentam um processo inverso, no qual seu culto teria sido gerado pela administração ptolomaica e só depois teria se difundido na sociedade e passado a integrar o rol dos deuses, tanto para egípcios quanto gregos [NEIVA, 2017, p. 56]. Poliane Santos [SANTOS, 2003, p. 73-74], em sua dissertação, ratifica essa interpretação, de que Serápis teria sido produto de um concílio político-religioso pensado para atender à necessidade alexandrina por um deus patrono que congregasse gregos e egípcios. Um deus que representasse aquela sociedade que se baseava no pluriculturalismo helênico-egípcio, uma vez que os próprios governantes Lágidas possuíam origem macedônica [Cf. GRALHA, 2018, p. 79-82].

Também, Serápis teria ampliado sua influência na sociedade egípcia ao sobrepor o deus Osíris como cônjuge de Ísis, a deusa da fertilidade e maternidade. Logo, o tradicional casamento de Ísis e Osíris, deu lugar à união de Ísis com Serápis [SOUSA, 2015, p. 141]. Tal união modificou também a figura de Hórus, filho do clássico casal, que passou a ser representado como Harpócrates, forma grega que deriva da nomenclatura egípcia Horpakhered, que significa literalmente: o Hórus criança [SALES, 2007, p. 317]. Em vista disso, Santos expõe que:

“Serápis exprimia para os gregos não somente a união de Zeus com Osíris (correspondente grego de Plutão e Dionísio), mas também a união com Hades e Asclépio, dando origem a Serápis como governante de todo Universo. Embora não tenha tido muito êxito entre os egípcios, Serápis uniu-se a Ísis e Hórus, que para os gregos representava Afrodite e Harpócrates, o Menino, formando uma nova tríade divina. A partir desse momento, Serápis torna-se a designação grega para Osíris, agregando todos os aspectos de sua personalidade divina, juntamente com as características dos deuses gregos.” [SANTOS, 2003, p. 74]

Dessa forma, Serápis se tornou um deus cada vez mais presente na antiga religião, dialogando com diversas deidades e granjeando elementos sincréticos tanto helênicos, quanto egípcios. Sua força foi tamanha que acabou se espalhando por toda a Bacia do Mediterrâneo e boa parte da Península Ibérica [NEIVA, 2017, p. 63].


Considerações Finais

Os casos aqui elucidados, de Osir-Hap e Serápis, são apenas alguns exemplos da teocrasia presente na religião egípcia. Este artigo é unicamente uma introdução à temática do sincretismo religioso e do hibridismo cultural entre os modelos religiosos da antiguidade. Longe de buscar o esgotamento do assunto, visamos apresentar ao leitor um dos inúmeros temas que circundam os estudos da egiptologia na atualidade. Contemplamos, pois, que as divindades da religião faraônica possuíam particulares aptidões, as de se materializar na iconografia e habitar, ou serem habitados por outros deuses. Esta habitação, proposta pelo egiptólogo alemão Hans Bonnet [BIELESCH, 2010, p. 385], apresenta o motor que formulou os movimentos sincréticos tais como os descritos neste texto. Por meio deste sincretismo a religião faraônica apresentou divindades diversas e culturalmente plurais, tais quais as próprias realidades sociais que congregavam no antigo Egito. Seus deuses articularam amplamente entre si chegando, até mesmo, aos outros panteões da antiguidade, como no caso de Serápis. Assim, novas divindades se construíram, fruto da justaposição sincrética ou da alteração dos caracteres de deuses já venerados 

Evidentemente, tais metamorfoses podem ser interpretadas a partir dos anseios políticos, ou mesmo econômico-sociais, dos clérigos responsáveis por tais deuses. Ainda, os movimentos sincrético-religiosos poderiam ir ao encontro das aspirações das administrações locais, que constantemente careciam afirmar sua legitimidade ante à população. Afinal, a influência dos deuses, dos sacerdotes e do próprio governo poderiam ser substancialmente ampliadas a partir destas atividades conciliadoras. Não obstante, a habitação e a teocrasia aparecem como arquétipos da antiga religião egípcia que pode ser vista como uma fé de manifestação essencialmente sincrética. Isso porque, os deuses, tais como os indivíduos humanos, não se mostram apáticos aos cursos da História. São remodelados uns pelos outros, dialogam entre si, com os homens e com suas culturas, além de acompanharem as transformações das sociedades humanas.

 

Referências

Felipe Daniel Ruzene é graduando em História (Licenciatura) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPAN e em Filosofia (Bacharelado) pelo Centro Universitário Claretiano. Possui Ensino médio pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – CTIG/UNESP. Correio eletrônico: felipe.ruzene@yahoo.com.br

BIELESCH, Simone Maria. Ptah-Sokar-Osíris: um Deus sincrético do Renascimento, 2010. Disponível em: http://neauerj.com/Anais/coloquio/simonemaria.pdf.

LOBIANCO, Luís E. A Romanização no Egito: Direito e Religião (séculos I à III d.C.), 2006. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2006_LOBIANCO_Luis_Eduardo-S.pdf.

GRALHA, Julio. “Poder no Egito Ptolomaico: Uma abordagem mágico-religiosa da legitimidade” in Heródoto, v. 3, n. 1, 2018. p. 79-99.

NEIVA, Caroline Oliva. O poder legitimador de Serápis em disputa na época Antonina (96-192): Um estudo comparado entre a iconografia monetária alexandrina e os Acta Alexandrinorum, 2017. Disponível em: http://docplayer.com.br/86708310-O-poder-legitimador-de-serapis-em-disputa-na-epoca-antonina-96-192.html.

PLUTARCO. Ísis e Osíris. Fim de Século: Lisboa, 2001.

RIBEIRO, Thiago Henrique Pereira. Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal de Osíris, 2014. Disponível em:  

https://www.academia.edu/7635576/Cosmologia_e_Morte_no_Egito_Antigo_o_Tribunal_de_Os%C3%ADris

SALES, José das Candeias. “O culto a Serápis e a coexistência helénico-egípcia na Alexandria ptolomaica” in Revista lusófona de Ciência das Religiões, ano VI, n. 12, 2007. p. 309-322.

SALES, José das Candeias. “Em busca do touro Ápis pelos caminhos da mitologia do antigo Egipto” in Revista lusófona de Ciência das Religiões, ano X, n. 18, 2013. p. 61-81.

SANTOS, Poliane Vasconi dos. Religião e sociedade no Egito antigo: do mito de Ísis e Osíris na obra de Plutarco (I d.C.), 2003. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/93452.

SOUSA, Rogério. “O mito da origem de Serápis revisitado” in Revista Estética e Semiótica, vol. 5, n. 2, Jul-Dez, 2015, p. 133-148.

SOUSA, Rogério; SILVA, João Ribeiro da (coord.). Serápis nos confins do império: o complexo sagrado de Panóias. Vila Real: Museu de Vila Velha, 2013.

TRECCANI Enciclopedia italiana online: teocrasia, 2020. Disponível em: http://www.treccani.it/enciclopedia/teocrasia/.

13 comentários:

  1. Felipe, parabéns pelo seu texto. Será que comunidades egípcias próximas chegaram a perceber em algum momento de que na cidade vizinha havia o mesmo deus habitando entre eles, personificado na figura de um outro boi com os vinte e nove sinais também e isso causou algum problema (tipo uma disputa, ou necessidade de provar a veracidade de qual deles realmente era a encarnação do deus em questão)?
    Obrigada.
    Talita Seniuk

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    1. Olá, Talita.
      Agradeço o comentário. Respondendo a tua pergunta, ainda existem algumas lacunas quanto à seleção do touro Ápis. Cláudio Eliano apresenta esta versão de que havia vinte e nove sinais a serem buscados no animal, contudo o escritor helênico Luciano de Samósata apontou uma versão mais satírica, na qual os sacerdotes escolhiam simplesmente o animal mais bonito para suceder o Ápis morto. Assim, o primeiro ponto a se destacar é a incerteza quanto ao processo de eleição de um touro optimus. O segundo quesito, que entra em seu questionamento em si, é que não há quaisquer fontes (de meu conhecimento) que apresente um cenário como este, no qual um touro foi identificado como Ápis enquanto outro ainda estava vivo. Até porque é cabível supor que apenas os sacerdotes de Mênfis soubessem todos estes sinais que distinguiam o animal, mas eles só sairiam a procura de um substituto após a morte do antecessor. Caso seja de seu interesse saber mais sobre todo este processo, indico-lhe o artigo do Dr. José Das Candeias Sales, da Universidade Aberta de Lisboa, intitulado “Em busca do touro Ápis pelos caminhos da mitologia do antigo Egipto”.

      Felipe Ruzene.

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    2. Olá Felipe, obrigada pela resposta e pela indicação; vou procurar o artigo sim!

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  2. Bom dia Felipe, parabéns pelo seu texto. Temos diversas múmias humanas desse período e de gatos também, mas será que existem múmias desses bois-deuses preservadas?
    Obrigado, Junior Pleis.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Olá, Junior.

      Agradeço o comentário. Respondendo tua pergunta, por incrível que parece, jamais se encontrou uma múmia de Ápis. Muitas escavações apresentaram diversas múmias que remontam ao período ptolomaico, por exemplo o sítio arqueológico descoberto no ano passado na província de Sohag ao sul de Cairo e o Vale das Múmias Douradas, um sítio arqueológico em Baharyia na margem oeste do rio Nilo. Nestas localidades foram encontradas múmias humanas e algumas de animais, dentre eles aves, como falcões e águias, cachorros, gatos e alguns roedores. Há, inclusive, algumas múmias de leões, descobertas na região de Sacara, mas nenhum dos touros foi achado. Alguns historiadores supõem que inexistem Ápis mumificados pois estes foram alvos recorrentes dos roubos às necrópoles egípcias, prática bastante comum desde a antiguidade, “O roubo das tumbas” foi título de um papiro da época de Ramsés IX, por volta do ano 1100 AEC. Como os touros eram sacros aos egípcios, devem ter sido enterrados com grande pompa, adornados de muitos tesouros e com grandes riquezas, o que pode ter despertado a cobiça de diversas pessoas, levando assim a destruição de diversos patrimônios históricos no Egito.

      Felipe Ruzene.

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  3. Primeiramente gostaria de parabenizar pelo fantástico trabalho que foi apresentado. Minha pergunta é:
    Como apresentar a diversidade cultural das sociedades orientais antigas, em sala de aula no nível básico, utilizando-se dos conteúdos das religiões faraônicas como as apresentadas no artigo?
    - Paloma Fernanda Silva Barros

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    1. Olá, Paloma.

      Agradeço muito o teu comentário. Primeiramente, falar do ensino da egiptologia na educação básica é algo bastante vasto e ainda pouco difundido no Brasil. Em parte pela deficiência dos materiais didáticos a nossa disposição, que se limitam a apresentar o Egito como um período “exótico” e distante. Além da formação de professores que muitas vezes é resumida, no que se refere à História Antiga, à antiguidade ocidental (isto é, Grécia e Roma). Mas, a parte disto, creio que a religião possa ser apresentada aos alunos como um ponto de interesse a partir do qual se pode trabalhar os temas previsto nas diretrizes de ensino. Ou seja, a partir do fascínio e curiosidade dos discentes pelas múmias, pirâmides, deuses e deusas, mitologias, crenças e magias do passado, nós professores podemos elencar os assuntos da história socio-político-social egípcia. Afinal, falamos de um estado onde tudo envolvia (direta ou indiretamente) a religião. Outro ponto de interessante ao docente, é apresentar o caráter sincrético da fé faraônica e ir além das fronteiras do Egito, apontando o diálogo com os povos próximos, os helênicos, romanos, mesopotâmicos e outras nações do Oriente ou de África. Por exemplo, há autores que ligam o monoteísmo hebraico ao Antigo Egito por meio do culto henoteísta (focado num deus único) fundado por Aquenáton, faraó da XVIII dinastia, por volta de 1350 AEC. Dentro destas questões, a antiguidade egípcia pode ser toda pensada, culturalmente falando, a partir dos movimentos religiosos. A vida da maioria das pessoas, a arte, a economia, as práticas sociais, a alimentação etc. sempre possuíam ligações com a fé, fortemente presente nas esferas administrativas deste estado teocrático. Espero ter ajudado a clarear um pouco as ideias e respondido adequadamente a sua pergunta.

      Felipe Ruzene

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  4. Olá, Felipe Ruzene.
    A priori queria afirmar que achei o seu artigo de tamanha importância para este assunto, visto que eu nunca tive um contato próximo com ele e mesmo assim compreendi perfeitamente a sua argumentação.
    Contudo, me surgiu um questionamento referente as libações para os deuses, em específico Osíris, se trazendo para um visão ocidental, poderia ser comparada com as libações que ocorrem durante a vida de um indivíduo pertencente a religião Católica? Visto que libação seria "o ato de derramar água, vinho, sangue ou outros líquidos com finalidade religiosa ou ritual, em honra a um deus ou divindade", o que na perspectiva católica seria o equivalente aos óleos/água usados no batismo, crisma e unção dos enfermos.
    -Dayane Gomes de Moura

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    1. Olá, Dayane.

      Agradeço muito o teu comentário. Enquanto pesquisadores somos capazes de fazer diversas aproximações e compreensões do que nos apresentam as fontes. Então, sim, sua proposição é possível e muito adequada. Vejamos, a libação foi uma prática comum às religiões antigas, com a aspersão de água, azeite, vinho, mel, leite e até sangue, podia-se honrar ou agradar as divindades presenteadas. Isto ocorreu com Osíris, mas também a outros deuses, gregos, romanos, hindus e ao Deus único do judaísmo. Sabemos que o cristianismo surge, justamente, a partir do judaísmo e dentro do Império romano, ou seja, é perfeitamente cabível imaginarmos as libações ritualísticas do catolicismo como uma permanência, ou uma releitura, das práticas religiosas da antiguidade. Outro fator que pode ratificar esta ideia, de reminiscências antigas no cristianismo contemporâneo, são os costumes populares de algumas comunidades brasileiras que tradicionalmente batizam a imagem de certos santos em rios da região (banho do santo, como usualmente são denominados). Temos novamente uma reinterpretação do processo de libação – verter em líquidos para veneração. Todavia, uma característica da tradição judaico-cristã é a aspersão nos fiéis, o processo de batismo com água e unção com óleos. Nestes casos a interpretação é um pouco distinta, mas ainda sim mantém relação com a antiguidade. A unção seria um processo no qual um sacerdote verte óleo sobre certa pessoa ou objeto no intuito de consagrá-los para o culto a Deus (como retratado na Bíblia cristã no livro de Êxodo). Enquanto isso o batismo tem a intuição de retratar a limpeza dos pecados, isto é, o processo é inverso, parte da figura central da religião (Jesus) para o fiel (pecador). Espero ter ajudado a clarear um pouco as ideias e respondido adequadamente a sua pergunta.

      Felipe Ruzene

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  5. Olá, Felipe Ruzene. Primeiramente, gostaria de parabenizar pelo artigo produzido.

    Sabemos que muitas das fontes que chegaram até nós, são produtos de uma determinada classe social, portanto, como pode o pesquisador conduzir sua percepção sobre possíveis práticas religiosas dentro do sincretismo religioso partindo de indivíduos oriundos de outras classes sociais? Como a prática de pesquisa pode traçar hipóteses levando em conta a existência, ausência ou limitação das fontes escolhidas?

    Muito obrigada, Viviane Roza de Lima.

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    1. Olá, Viviane.

      Agradeço o comentário. Tua percepção é notável, de fato as fontes do período são produções de determinados grupos sociais, não estando isentas aos anseios de seus autores. Primeiramente, vale ressaltar que a utilização do termo “classes sociais” ou a aplicação do materialismo histórico à história antiga é motivo de discordância entre os historiadores, pois muitos consideram um anacronismo. Teoria à parte, é possível vislumbrarmos as divergências entre as religiosidades exercidas por diferentes grupos sociais do Antigo Egito. Por exemplo, José das Candeias Sales e Julio Gralha apresentam que mulheres e pessoas mais pobres eram proibidas no Serapeu de Alexandria, demonstram também que, enquanto o modelo helênico dos deuses era a regra entre os mais ricos, as representações egípcias (zooantropomórficas) eram mais comuns aos grupos menos abastados. Outrossim, a prática dos elementos mágicos da religião egípcia aparece como provenientes das classes trabalhadoras. Até a ritualística e as festas sacras, entre ricos e pobres, era diferente, de modo que o pesquisador pode (fazendo as devidas anotações e críticas das fontes) trabalhar tanto com a religião oficial, quanto com a religião popular no Egito. Há fontes para percebermos, embora não com o mesmo nível de profundidade, o papel da religião em vários grupos sociais. O próprio sincretismo em si ocorreu de modo diverso, na alta sociedade pela aproximação entre helênicos e egípcios para a manutenção e garantia do poder, enquanto nos grupos mais pobres se deu através do hibridismo entre culturas e comunidades. Espero ter ajudado.

      Felipe Ruzene

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    2. Eu que agradeço a riqueza da sua explanação e mais uma vez parabéns pelo texto produzido.

      Viviane Roza de Lima

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