Bruno Uchoa Borgongino

 

UM NEGRO ENTRE OS “PAIS DO DESERTO”: REFLEXÕES SOBRE RAÇA NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA A PARTIR DE ABBA MOISÉS, O ETÍOPE


Poucos anos atrás, adveio-me uma súbita inquietação sobre o recorte espaço-temporal em que me especializei, o Mediterrâneo na Primeira Idade Média: haveria, na documentação escrita no período e atualmente disponível, referências a pessoas negras? Soava-me improvável que os cristãos não estivessem cientes de que existiam negros, pois, ao contrário do que é muitas vezes pressuposto, já havia circulação de pessoas e notícias ao longo de extensas rotas que conectavam toda a Afro-eurásia. Será que os eventuais encontros não foram relatados? Será que se produziu saberes a respeito da diversidade fisionômica humana e, mais especificamente, sobre alguns terem pele negra? E a pergunta que mais me desconcertaria: haveria referências a negros no meu próprio corpus de investigação que passaram despercebidas?

Estamos habituados a imaginar a Idade Média como branca. Segundo Whitaker, os estudos medievais negaram ao negro o direito de partilhar o passado, encorajando estudantes a perguntarem: “onde estavam os negros na Idade Média?” num tom que sugere incerteza sobre a própria existência de negros no período. O autor, ele próprio negro, relatou nesse artigo uma experiência pessoal: quando era ainda graduando, um outro estudante o teria questionado sobre ser um medievalista, insinuando que estudar a Idade Média significaria dar as costas para a cultura afro-americana para dar atenção exclusivamente a homens brancos [WHITAKER, 2015, p. 3; 6].

Mais que mera curiosidade intelectual e acadêmica por encontrar o negro na documentação medieval, a questão me soava politicamente importante. Num artigo de 2016, Sierra Lomuto argumentava que, ao não se levantar questões de raça na Idade Média, permitimos que a Idade Média seja vista como um espaço pré-racial onde a branquitude pode alocar sua herança étnica, validando as reivindicações dos grupos supremacistas brancos [LOMUTO, 2016]. Vivemos em tempos de ascensão global de grupos de extrema-direita que reivindicam para si o vínculo com um passado medieval de branquitude viril, inclusive no Brasil [PACHÁ, 2020]. Como denunciar a falsidade da relação entre tais pleitos políticos perniciosos e uma mítica da Idade Média branca sem aproximar os estudos medievais dos estudos raciais?

Por outro lado, sentia-me desconfortável por ser um intelectual brasileiro branco que reconhecia o racismo estrutural e a dívida histórica como tópicos urgentes, mas que poderia tranquilamente me furtar desses debates no percurso acadêmico. Estava numa área da qual tradicionalmente não se esperaria debates sobre raça, portanto, soaria natural que eu estudasse (supostos) brancos que escreveram para outros (supostos) brancos sem qualquer consideração a negros. Poderia relevar ou mesmo passar adiante de dados documentais sobre negros e negritude nos escritos medievais sem maiores contestações historiográficas ou ideológicas.

No Brasil, predomina o silêncio sobre o lugar que o branco ocupa nas relações sociais e seu papel ante as desigualdades. Bento demonstrou que há um pacto narcísico de preservar, isentar e proteger os interesses do grupo branco, que resulta na resistência dos brancos em perceberem os vínculos entre discriminação racial e desigualdade social. Mesmo entre os progressistas, a autora notou postura semelhante, só que mais difusa. Ainda segundo Bento, ao não ser questionado sobre cor em situações públicas ou privadas, não há sentido para o branco se identificar racialmente, propiciando com que se relativize o próprio poder branco [BENTO, 2002, p. 156-167]. A estranheza da ideia de se estudar negritude na Idade Média torna a área segura para que brancos brasileiros, mesmo os progressistas, possam angariar prestígio político-acadêmico mesmo se esquivando à problematização racial e à sua responsabilidade pela perpetuação da branquitude.

Recusando-me a permitir que área de História Antiga e Medieval permanecesse como refúgio para brancos que desejam escapar à revisão de suas próprias posições sobre questões raciais, decidi tornar minhas inquietações particulares em questões de investigação. Comecei então a estudar a retórica político-racial [BYRON, 2002] na literatura ascética cristã mediterrânica entre os séculos III e VII, ou seja, o recurso a tropos raciais para propósitos políticos no âmbito da própria comunidade. Neste trabalho, apresento algumas reflexões sobre raça na Primeira Idade Média a partir da figura do abba Moisés, “Pai do Deserto” caracterizado como negro e etíope em dois documentos “orientais”: os Apotegmas dos Pais e a História Lausíaca de Paládio.

Por muito tempo, as pesquisas sobre os monaquismos adotaram uma perspectiva linear e etapista sobre o fenômeno: tendo origem nos desertos do “Oriente”, o movimento se expandiria e alcançaria eventualmente o “Ocidente”. Mesmo em manuais mais recentes, como o de Marilyn DUNN [2003], nota-se essa abordagem. Recentemente, a historiografia está reconsiderando essa narrativa, destacando tanto a heterogeneidade e o caráter permanentemente disputado do que significaria ser monge, quanto a impropriedade da tese do “big bang” monástico ocorrido no Oriente [GOEHRING, 1999, p. 5]. Alinhando-me às perspectivas renovadoras no campo, viso contribuir ao debate demonstrando que tropos raciais eram empregados nos discursos produzidos nas controvérsias sobre as questões monacais. Desse modo, defendo que o processo de constituição do que viria a ser entendido como “monge” foi acompanhado do recurso a concepções raciais correntes que, embora não se destinasse aos sujeitos externos à comunidade, contribuiu historicamente também para a cristalização de interpretações discriminatórias sobre a outridade.

 

Abba Moisés e a controvérsia sobre raça na pré-modernidade

Neste trabalho, não é de meu interesse refletir sobre relações raciais. Tampouco, avaliar a existência ou não de racismo. Até o presente momento das investigações, não disponho de elementos que permitam averiguar se as ideias sobre os etíopes tiveram consequências concretas nas interações com indivíduos negros ou com sociedades majoritariamente compostas por negros. Entretanto, emprego o conceito de raça para a análise em curso. Não sou o primeiro a fazê-lo: em 2001, o Journal of Medieval and Early Modern Studies publicou o dossiê Race and Ethnicity in the Middle Ages, contando com a contribuição de sete pesquisadores. Os artigos nesse periódico, principalmente o escrito por Thomas Hahn, desencadearam a abertura dos estudos medievais às questões de raça.

Sobre a possibilidade de emprego de raça para uma análise como a que proponho, cabem ressalvas para se evitar anacronismos. Primeiramente, deve-se ter consciência de que a palavra em si é posterior à Idade Média. Durante o período em questão, utilizava-se termos como genos e ethnos, em grego, e gentes e populus, em latim, em referência a sociedades diferentes; não havia um correspondente à palavra moderna raça [BARTLETT, 2001; GEARY, 2005]. Em segundo lugar, compete observar que o pensamento racial medieval operava distintamente do moderno [HAHN, 2001; WHITAKER, 2015]. Ainda assim, defendo, seu manejo seria mais proveitoso do que o conceito de etnia, mais aceito academicamente para o período, principalmente pelos debates sobre etnogênese. A ideia de etnia é mais abrangente, podendo contemplar também aspectos raciais, mas não apenas; sendo inespecífica, pouco contribuiria às reflexões aqui propostas.

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães afirma que as raças são efeitos de discursos sobre origens e a essência de um grupo e de transmissão de traços fisionômicos, intelectuais e morais entre gerações [GUIMARÃES, 2003]. Achille Mbembe argumenta que a raça seria uma ficção útil que constitui o outro não como semelhante a si, mas como objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer ou simplesmente destruir [MBEMBE, 2018, p. 27-28]. Ainda que sem a rigidez do posterior racismo científico, já se imaginava os grupos humanos a partir da suposição de herança moral e física comum, delegando a alguns destes um estatuto ontológico de inferioridade e perniciosidade.

Os saberes clássicos foram fundamentais para o estabelecimento da perspectiva racial da Primeira Idade Média. Prevalecia um determinismo geográfico, que atrelava fatores climáticos e ambientais a características de populações transmitidas por gerações. Os elementos do meio em que se vive afetaria não apenas as qualidades físicas, mas também as mentais: o ambiente moldaria também o caráter. Dessa maneira, supunha-se inferioridade e fraqueza como constitutivas de todos os procedentes de determinadas regiões, sendo estas expressas na fisionomia comum da raça [ISAAC, 2004]. Como a Etiópia estaria situada numa área quente e próxima do sol, seus habitantes seriam negros [SNOWDEN, 1970]; sendo a cor preta dotada de aspectos negativos [PASTOUREAU, 2008, p. 20-35], a negritude atestaria a imoralidade do etíope, principalmente quanto à sexualidade [BRAKKE, 2001, p. 511-513]. 

A figura de Moisés é particularmente importante para a discussão sobre raça no período em questão, por ser o único negro entre os “Pais do Deserto”, como ficaram tradicionalmente conhecidos os primeiros monges egípcios. Para Snowden, autores cristãos aludiam ao etíope, o mais remoto e negro dos homens, como motivo para ilustrar a universalidade do cristianismo sem qualquer conotação pejorativa. A oposição simbólica entre branco e negro, comum na exegese patrística, concerniria apenas ao âmbito espiritual. O abade Moisés, caracterizado como branco por dentro e negro por fora, ilustraria o caráter inclusivo desse cristianismo [SNOWDEN, p. 209-211]. Já para Philipp Mayerson, a documentação continha episódios em que Moisés era inferiorizado pela cor de sua pele, indicando a existência de um “sentimento anti-negro” [MAYERSON, 1978]. As interpretações contrastantes entre Snowden e Mayerson derivam de suas posições num debate maior: afinal, naquela época, as diferenças percebidas entre brancos e negros importavam? Para Snowden, não; para Mayerson, sim.

Noel reconheceu que há razões para que o caso de Moisés seja analisado para as atitudes frente ao negro no Mediterrâneo. Todavia, alerta o autor, seria metodologicamente perigoso extrapolar dessa história para como os negros viam a si mesmos naquela sociedade. Seria mais proveitoso, nesse caso, o estudo da negritude como construção literária [NOEL, 2004]. É nesse sentido que compreendo que a caracterização de Moisés como negro etíope constituiria um tropo numa retórica político-racial, para adaptar um conceito proposto por BYRON [2002]. Tal menção à procedência geográfica e à cor da pele do personagem destinava-se à promoção dos interesses políticos dos autores junto à sua própria comunidade.

No corpus dos séculos IV e V, Moisés é mencionado em quatro documentos: nos Apotegmas dos Pais, na História Lausíaca de Paládio, nas Instituições e Conferências de João Cassiano e na História Eclesiástica de Sozomeno [AUBERT, 2002]. Dentre esses textos, apenas os dois primeiros mencionaram o personagem como negro etíope. Pela ausência dessa caracterização nos dois últimos textos, restrinjo minha análise aos Apotegmas dos Pais e à História Lausíaca.

 

Moisés nos Apotegmas dos Pais

Os Apophthegmata Patrum, ou Apotegmas dos Pais em português, consistem em dizeres e histórias dispersas e fragmentárias, escritas por diversos autores e reunidas em coletâneas sistemáticas ou alfabéticas e disponíveis em vários idiomas. Nessas coleções, relata-se experiências e ensinamentos dos primeiros monges egípcios, os “Pais do Deserto”, particularmente da Nítria e da Cétia. Por essas histórias terem sido transmitidas oralmente e só depois de muito tempo, escritas e editadas, torna-se difícil datar ou localizar geograficamente sua produção. Gould argumentou que os Apotegmas foram compilados por indivíduos ou comunidades que queriam preservar uma determinada visão sobre o monaquismo egípcio e sobre a tradição de vida monacal que mantinham [GOULD, 1993, p. 1-25]. Para essa análise, considero apenas a série sistemática em grego, datada do século VI, conforme foi criticamente editada por Jean-Claude Guy e publicada na coleção Sources Chrétiennes.

No decorrer dessa coletânea, o personagem de Moisés, o Etíope é mencionado em dezoito dizeres. Desse total, três põe em questão sua negritude ou sua procedência etíope: VIII, 13; XV, 43; e XVI, 9. Cabe considerar a organização desse material, compreendendo o contexto textual em que cada história foi inserida. Em cada livro da coleção sistemática, foram agrupados dizeres que remeteriam a temas afins. O oitavo livro aludiria à ostentação, o décimo quinto, à humildade e o décimo sexto, à resistência ao mal.

Na primeira narrativa destacada, um governador viaja para a Cétia a fim de conhecer o abba Moisés. Quando o encontra, sem o reconhecer, pergunta ao etíope pela localização da sua clausura, ouvindo, como resposta, a acusação de que Moisés seria simples de espírito e herético. O governador se dirige então para a igreja, onde conta aos clérigos o que ocorreu. Os homens, então, esclarecem a situação: “um idoso grande e negro, vestindo roupas velhas (...) é o próprio abba Moisés; foi porque ele não queria te conhecer que disse aquilo contra ele mesmo” [Apotegma dos Pais, VIII, 13].

Na outra história, um arcebispo diz a Moisés que ele havia se tornado branco. O abba então indaga: “Exteriormente, senhor e pai, ou também interiormente?” [Apotegma dos Pais, XV, 43]. No intuito de testá-lo, o epíscopo orienta os clérigos para que, assim que o monge entre no santuário, afugentem-no para depois segui-lo. “O ancião entrou lá e eles o injuriaram e o afugentaram dizendo-lhe: ‘vá embora, Etíope’” [Apotegma dos Pais, XV, 43]. Ao sair, Moisés diz a si mesmo: “Bem feito para você, de pele toda negra como cinza; não sendo um homem, por que permitiriam você entre homens?” [Apotegma dos Pais,XV, 43].

 Na última passagem a ser considerada, Moisés se encontra com outros pais, que decidem testá-lo, dizendo: “por que esse etíope também vem entre nós?” [Apotegma dos Pais, XVI, 9]. Apesar de escutar, o protagonista permanece em silêncio. Os pais perguntam-no: “abba, não ficou incomodado agora?” [Apotegma dos Pais, XVI, 9], ao que Moisés responde: “eu fiquei incomodado, mas eu não falei” [Apotegma dos Pais, XVI, 9].

Como reivindicaram Wimbush e Byron, a abordagem da negritude de Moisés nessas passagens deve ser interpretada como uma estratégia, não como atitudes reais diante da diferença racial. Wimbush sublinhou como a alusão à negritude simbolizaria as formas de vida mais baixas e imperfeitas que se oporiam diametralmente à vida ideal – a ascética [WIMBUSH, 1992]. Byron, por sua vez, destacou como cada um desses três episódios se vincularia à promoção de uma virtude monástica (autocontrole, indiferença e impassibilidade), constituindo a outridade negra num artifício retórico empregado em favor de um determinado modelo ascético [BYRON, 2002, p. 115-121]

 

Moisés na História Lausíaca

A História Lausíaca foi escrita por volta do ano de 420 por Paládio de Helenópolis, a pedido de Lauso, um eunuco que ocupava uma prestigiada posição na corte imperial de Teodósio II. O texto foi composto por quarenta e sete biografias de proeminentes monges egípcios, com os quais Paládio teria se encontrado na época em que esteve na região. De acordo com Claudia Rapp, a requisição de tal trabalho por Lauso decorria de uma tentativa de conciliação com grupos monásticos de tradição egípcia, os quais sofriam oposição por parte dos monges de Constantinopla [RAPP, 2001].

Paládio dedicou à vida de Moisés o décimo nono livro da sua História Lausíaca. Além desse asceta, há apenas uma outra personagem referida como etíope, no capítulo XXIII: um demônio que surge para Pacon na forma de uma donzela etíope para excitá-lo [PALÁDIO, XXIII]. De todo modo, as menções à negritude e à origem etíope de Moisés são pontuais: constam no início e no fim da narrativa.

Neste documento, a ênfase recai na trajetória do personagem. Segundo o autor, Moisés começa a vida como escravo que é rejeitado pelo seu senhor, tamanha sua imoralidade, e se entrega à ladroagem. Paládio comenta que possivelmente o abba etíope teria cometido até assassinatos. Eventualmente arrependido, Moisés se converte ao monaquismo e inicia sua penitência. A partir de então, os demônios, no intento de desviá-lo desse caminho, incitam-no aos seus antigos vícios de porneia. O relato enfatiza o empenho de Moisés no combate aos assaltos licenciosos promovidos pelas forças maléficas, por meio do rigor ascético e da busca por conselhos junto ao abba Isidoro. A vitória definitiva sobre os demônios ocorre após seis anos de intensa luta [PALÁDIO, XIX]

David Brakke demonstrou que a aparição de demônios em forma de etíope na literatura ascética evocava o antigo estereótipo da hiper-sexualidade e da carnalidade excessiva dos negros, servindo para afirmar o monge como apto a resistir aos seus próprios desejos eróticos. O caso do Moisés apresentado por Paládio, em que o monge foi marcado como alguém que nasceu etíope e negro, traria consigo uma ambivalência: incorpora tanto aquilo a que renuncia, o demoníaco e os excessos carnais, e aquilo que almeja se tornar, um monge. Assim, segundo Brakke, a procedência etíope e a negritude de Moisés, demarcariam o potencial transformador que a disciplina monástica seria capaz de operar [BRAKKE, 2001, p. 527-533].

Claudia Rapp sublinhou a importância dos temas da renúncia sexual e da arrogância na História Lausíaca, tendo em vista seu destinatário ser o eunuco Lauso. As tentações sexuais seriam, segundo a autora, enviadas por Deus como uma lembrança da fraqueza humana. Ante tais limitações, seriam importantes o pai espiritual, a comunidade com companheiros ascéticos e a participação frequente na eucaristia para prevenir a excessiva autoconfiança [RAPP, 2001, p. 286-287]. Portanto, a inclusão da vida de um monge negro, cuja procedência evocaria o tropo racial da carnalidade etíope, desempenhava um papel no propósito de Paládio junto ao destinatário de seu texto.

 

Considerações finais

O que apresentei decorreu de uma repentina curiosidade, ocorrida recentemente: haveria negros no corpus documental cristão? Enquanto levantava questões a esse respeito, adveio-me duas constatações: por um lado, testemunhamos a ascensão de uma extrema-direita que pretende se associar a um passado medieval branco e, por outro, naturalizamos o distanciamento entre estudos medievais e debates raciais. Mais do que academicamente pertinente, pareceu-me que a investigação da negritude no medievo era politicamente urgente.

Ao longo deste trabalho, expus reflexões sobre questões raciais para o estudo da Primeira Idade Média. O conceito de raça, desde que ressalvados a inexistência de um termo equivalente em latim ou grego e as suas especificidades medievais em relação à modernidade, apresenta potencialidades em pesquisas concernentes ao período em questão. O caso do abba Moisés foi levantado por sua peculiaridade, que o torna relevante à discussão proposta: foi o único “Pai do Deserto” caracterizado como negro etíope. Para alguns historiadores, Moisés foi analisado para atestar se os cristãos da época discriminavam ou não os negros. Em pesquisas mais recentes, os relatos sobre esse asceta etíope buscaram avaliar o elemento racial como artifício retórico e literário. Alinhando-me às tendências em voga, verifiquei que os dois documentos que caracterizavam Moisés como negro etíope – os Apotegmas dos Pais e a História Lausíaca – empregavam estereótipos raciais que então circulavam para promover os interesses de seus autores.

 

Referências

Bruno Uchoa Borgongino é doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor de História Medieval na Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do LEOM – Laboratório de Estudos de Outros Medievos.

AUBERT, Jean-Jacques. “La pertinence de la négritude: Moïse L´Éthiopien” in: Histoire et herméneutique, n. 3, p. 27-40, 2002.

BARTLETT, Robert.             “Medieval and modern concepts of race and ethnicity” in: Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 31, n. 1, p. 39-56, 2001.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. São Paulo, Tese (doutorado), 2002

BRAKKE, David. “Ethiopian demons: male sexuality, the black-skinned other, and the monastic self” in: Journal of the History of Sexuality, v. 10, n. 3, p. 501-535, 2001.

BYRON, GAY L. Symbolic blackness and ethnic difference in early christian literature. London, New York: Routlegde, 2002.

DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism. From the Desert Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003.

FROST, Peter. “Attitudes towards blacks in the Early Christian Era” in: The Second Century: a Journal of Early Christian Studies, v. 8, n. 1, p. 1-11,1991. 

GEARY, Patrick J. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005.

GOEHRING, James E. Ascetics, society and the desert: studies in Early Egyptian monasticism. Harrisburg: Trinity, 1999.

GOULD, Graham. The Desert Fathers on monastic community. Oxford: Clarendon, 1993.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Como trabalhar com “raça” em sociologia” in: Educação e pesquisa, v. 29, n. 1, p. 93-107, 2003.

HAHN, Thomas. “The difference the Middle Ages makes: color and race before the modern world” in: Journal of Medieval and Early Modern Studies, v. 31, n. 1, p. 1-38, 2001.

ISAAC, Benjamin. The invention of racism in classical Antiquity. Princeton: Princeton University, 2004.

Les Apopthegmes des Pères. Collection systématique. Paris: Cerf, 1993-2005, 3v.

LOMUSO, Sierra. “White nationalism and the ethics of Medieval Studies” in: In the Middle, 2016. Disponível em: https://www.inthemedievalmiddle.com/2016/12/white-nationalism-and-ethics-of.html Acessado em 29 de agosto de 2020.

MAYERSON, Philip. “Anti-black sentiment in the Vitae Patrum” in: Harvard Theological Review, n. 71, p. 304-311, 1978.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018.

NOEL, Brian. “Race in Late-Antique Egypt: Moses the Black and authentic historical voice” in: Eras Journal, n. 6, 2004.

PACHÁ, Paulo. Why the Brazilian far right loves the European middle ages. Pacific Standard, 2019. Disponível em: https://psmag.com/ideas/why-the-brazilian-far-right-is-obsessed-with-the-crusades Acessado em 10 de setembro de 2020.

PALÁDIO. Palladio, La Storia Lausiaca. Verona: Mondadori, 1974.

PASTOUREAU, Michel. Black. The history of a color. Princeton: Princeton University, 2008.

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SNOWDEN, Frank. Blacks in Antiquity. Ethiopians in the Greco-Roman experience. Cambridge: Harvard University, 1970.

WHITAKER, Cord J. “Race-ing the dragon: the Middle Ages, race and trippin´into the future” in: Postmedieval: a journal of medieval cultural studies, v. 6, n. 1, p. 2-11, 2015.

WIMBUSH, Vincent L. “Ascetic behavior and color-ful language: stories about Ethiopian Moses” in: Semeia, n. 58, p. 81-92, 1992.

9 comentários:

  1. Boa noite. Interessante a reflexão trazida pelo texto a respeito da discussão sobre raça no período medieval.
    Gostaria de saber quem seriam os chamados "pais do deserto" mencionados no título desse artigo. Não consegui entender.

    Daniel Gonçalves da Costa Leite.

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    1. Olá, Daniel!

      Obrigado pela leitura do meu trabalho e pelo seu comentário. Realmente, acabei não conseguindo explorar tanto os aspectos históricos do monaquismo no meu artigo. Vou contextualizar.

      Tradicionalmente, narra-se que a origem do movimento monástico cristão estaria em figuras que se isolaram nos desertos do Oriente e cuja vida, exemplo de virtude, e ensinamentos deveriam nortear o monaquismo legítimo. Sem entrar no mérito da questão se tais monges efetivamente existiram ou não, notamos que esses personagens protagonizaram textos literários destinados a monges que os exaltavam. Esses documentos foram produzidos muito posteriormente à época em que teriam vivido os personagens retratados e com intenções relacionadas ao seu próprio contexto de redação.

      É nessas circunstâncias, inclusive, que os Apotegmas dos Pais e a História Lausíaca, que apresento neste artigo, foram escritos.

      "Pais do Deserto" foi como ficaram conhecidos esses sujeitos tidos como pioneiros do monaquismo cristão. As aspas é justamente para chamar atenção para o fato de que foram figuras historicamente construídas a posteriori, tendo a própria expressão um teor apologético. E é o que torna Moisés fascinante: estando em meio a heróis do monaquismo cristão, é uma figura realmente de referência ao movimento religioso.

      Caso tenha ainda alguma dúvida, fico à disposição!

      Bruno Uchoa Borgongino.

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  2. O uso de personagens históricos ou a Idade Média como forma de fomentar uma extrema-direita branca ou o uso para combatê-la, não seria uma forma de transporter discursos modernos para uma época anterior (anacronismo)?

    Muito obrigado!

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    1. Olá!

      Obrigado pela questão, José. Realmente, é um ponto a que venho refletindo muito na minha pesquisa atual e a que ainda pretendo explorar em futuros trabalhos.

      Há muitas menções a personagens negros em documentos medievais, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Inclusive, em materiais bem acessíveis, como a Legenda Áurea, a Canção de Rolando ou as cartas de Abelardo e Heloísa. Um projeto interessante de divulgação a esse respeito é o Medieval People of Color (@medievalpoc no twitter e no tumblr), que compartilha representações artísticas de pessoas de cor no medievo. Ou seja, a diversidade fisionômica humana esteva presente na produção literária e imagética do período.

      Além disso, toda a Afroeurásia era perpassada por redes de trocas onde circulavam pessoas, bens e saberes. O Mediterrâneo não estava isolado do resto do mundo, pelo contrário, estava conectado. Assim, torna-se improvável que ao menos notícias de que haviam indivíduos negros não alcançassem o mundo cristão naquela época.

      Essas são dados objetivos. Entretanto, por si só, já invalidam a ideia de "Idade Média branca" (imagem cuja genealogia histórica é traçável, aliás) dos supremacistas.

      Tendo isso por observado, há outro problema que a sua pergunta desencadeia: como analisar esses dados e apontamentos sem recair no anacronismo? Aí tangenciamos um debate teórico-metodológico complexo, que permeia a disciplina História como um todo.

      Acredito que toda investigação tem que ser realizada a partir de métodos e procedimentos teóricos rigorosos e condizentes as particularidades do período histórico em questão. Isso seja qual for o problema ou o objeto.

      No caso do estudo de temas raciais especificamente, se você procurar teorias biológicas como as de Gobineau na Idade Média, obviamente não irá encontrar. Nem irá encontrar perspectivas raciais que remetam às posteriores ao século XVI - no máximo, o mito de Cam, mas, ainda assim, apresentado de outro modo. Como a historiografia tem postulado, raça opera de modo muito diferente na pré-modernidade. Deve-se respeita as fontes, afinal.

      Ainda nesse ponto, cabe outra ressalva sobre os debates atuais sobre a identificação de determinados personagens históricos como negros, como Jesus ou Cleópatra. Entendo os porquês de se reivindicar a negritude dessas figuras. Todavia, devo apontar que: 1) não há qualquer evidência concreta que nos permita afirmar qual seria a cor de pele desses personagens; 2) os argumentos baseados na premissa de que "as pessoas daquela região têm essa fisionomia" acabam por reproduzir e retificar o essencialismo e o determinismo geográfico que fundamentam o pensamento racial.

      Mesmo quando personagens são retratados como negros na documentação, é necessária precaução. Nesse texto, por exemplo, adotei a perspectiva de que raça operava como tropo (ou seja, algo não literal) no caso do abba Moisés. Constatando que os textos são muito posteriores à época em que Moisés teria vivido, não teria como avaliar se era de fato negro ou se a tradição literária que o tornou negro. De toda maneira, a questão importa; o que me interessa é que a negritude foi manejada pelos autores desses documentos para propósitos oriundos da própria conjuntura. Também, sou cético quanto a extrapolar desses dados para reflexões a respeito de relações raciais ou racismo.

      Veja, meu destaque é quanto à necessidade de rigor para a formação de um saber academicamente válido, ou seja, precavido de inconsistências. Isso não significa negar que o meu interesse pelo tema foi suscitado por questões políticas prévias ou que meu trabalho não possa vir a ter consequências em debates políticos. Na verdade, reconheço - e, sinceramente, é mais honesto fazê-lo do que prometer uma objetividade neutra que não existe.

      Fico à disposição para prosseguir o debate, caso queira levantar outro ponto sobre o assunto!

      Att.,
      Bruno Uchoa Borgongino.

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    2. Correção:
      *De toda maneira a questão não me importa; o que me interessa (...)

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    3. Muito obrigado pelo texto e pela resposta! Gosto bastante dos pais do deserto e do monaquismo.

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  3. Você problematiza o termo raça, no entanto resolve usá-lo para uma época anterior a ele. Essa intenção em usar este termo e não etnia, mais comumente aceito para o período, teria a intenção de tornar o tabalho mais "engajado" politicamente ?

    Muito obrigado!

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    1. José, obrigado pelo interesse no trabalho e pelas questões que levantou. Ótima oportunidade de aprofundamento!

      A opção pelo uso do conceito de "raça" não é por razões políticas, ainda que meu interesse pelo tema venha de questões políticas.

      Na pesquisa que estou desenvolvendo, esse conceito está demonstrando grande potencial analítico e heurístico. Para tanto, obviamente, foi necessária ressalvas, como a de não considerar correspondências entre como raça opera na modernidade e como operava na Idade Média. Por outro lado, os conceitos de "relações raciais" ou de "racismos", por enquanto ao menos, não seriam aplicáveis. Justamente por isso não os uso, a despeito de reconhecer ambos como necessários ao debate político atual. E é claro que a minha opinião poderá mudar sobre isso, não por razões políticas, mas pela viabilidade de constituir referencial teórico eficiente.

      A problematização do conceito no trabalho foi nessa direção: ponderar as ressalvas necessárias para torná-lo instrumento analítico apropriado e efetivo no estudo do fenômeno em questão. A função da teoria numa pesquisa em História é estabelecer referências e perspectivas que tornem um objeto passível de ser investigado, ainda que parta (e dificilmente não o é) de pressupostos estranhos aos sujeitos históricos considerados.

      Sobre o conceito de etnia, ressalvas: embora exista a palavra grega "etnos", seu significado é totalmente distinto daquele que hoje entendemos por "etnia". De todo modo, para o período que estudo, o seu manejo é habitualmente empregado para um fenômeno completamente distinto, a saber, as migrações germânicas. É a grande discussão sobre a "etnogênese".

      Os grupos germânicos tinham uma presença significativa ao redor do Mediterrâneo durante a Idade Média, sendo a fluidez seus processos de estabelecimento de identidades uma questão imediata a se lidar. O etíope não: embora houvesse contatos, aparentemente não eram tão recorrentes, nem tão estáveis e nem uma urgência tão grande. Considere ainda que, no caso etíope, há várias peculiaridades em sua caracterização: um estatuto fisionômico e moral indissociáveis, advindos de um discurso que categoriza hierarquicamente as sociedades humanas a partir de supostas características herdadas. Uma ficção sobre uma inferioridade ontológica. Sua extrema negritude que denota sua plena outridade e, portanto, sua perniciosidade. O conceito de etnia não dá conta dessa especificidade, mas o de raça, sim.

      Caso tenha discordâncias, concordâncias ou novos questionamentos, estou à disposição! :)

      Att.,
      Bruno Uchoa Borgongino.

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